CasAbsurda anuncia fechamento definitivo do espaço cultural

Situação financeira piorou com a suspensão de evento devido à pandemia; atuais ocupantes fazem campanha para ajudar a pagar último aluguel e pintura


Por Júlio Black

25/09/2020 às 07h00- Atualizada 25/09/2020 às 07h40

A CasAbsurda fechou as portas, e talvez a melhor forma de mostrar a falta que o espaço fará para a cultura juiz-forana – principalmente aquela que vive à margem dos grandes e consagrados espaços da cidade – seja transportar para o pretérito os três primeiros parágrafos de uma matéria publicada pela Tribuna em junho de 2017:

“Havia um lugar quase escondido ali no Granbery, no finalzinho da Rua Barão de Santa Helena, em que os artistas de Juiz de Fora – em particular muitos que estão fora do radar – podiam apresentar seus trabalhos, serem (re)descobertos, aproveitar o espaço para criar, conhecer seu público e outros colegas de ofício. Por consequência, era um espaço de mão dupla, em que o público podia conhecer a diversidade da fauna artística que está por aí, fazendo sua parte. Este lugar era a CasaAbsurda, espaço cultural que vinha fazendo sua parte para agitar o mundinho cultural de JF City há quase dez anos com vários eventos (…).

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A partir daí, foi sendo criada e produzida uma série de eventos que chamaram a atenção de vários segmentos culturais da cidade. Dentre os tradicionais da Casa, estavam a ECCA (Exposição Coletiva CasAbsurda), a Roda Absurda, o Festival Absurdo e o Graffiti Absurdo.

Mas o local abria espaço para outras atrações (…), como saraus de poesia, shows em geral, lançamento de CDs e livros, batalha de hip-hop e outras atividades que cabiam nos muros e paredes grafitados da CasAbsurda – e que podiam ir além.”

Os tempos mudaram, e para pior, ainda mais com a pandemia do novo coronavírus, que fechou vários espaços culturais, públicos e privados, e muitos desses espaços privados passaram a sofrer ainda mais para se manterem ativos e evitar a capitulação. A CasAbsurda, infelizmente, não teve mais como resistir: os atuais cinco moradores do espaço publicaram no último domingo (20), no perfil da casa no Instagram (@absurda_703), que não havia mais como arcar com o valor do aluguel do imóvel, uma vez que o espaço cultural não realizava eventos desde o início da pandemia e, para piorar, todos os seus moradores ficaram desempregados.

Como é preciso pagar o último aluguel e também devolver o imóvel com a pintura, eles realizaram um bazar para vender não apenas os eletrodomésticos (máquina de lavar, geladeira) como também obras de arte. Com o tempo escasso e grana ainda mais curta, decidiram partir para uma campanha de crowdfunding com o objetivo de arrecadar R$ 3 mil para fechar todas as contas.

‘Fazer a cultura acontecer’

A professora Noêmea da Silva Oliveira faz parte do grupo que vive atualmente na casa, tendo passado os últimos três anos no local, ajudando a organizar os eventos. Ela conta que a CasAbsurda sempre se manteve durante esses anos por meio dos eventos realizados, sempre de forma independente e sem retorno financeiro, sempre com o objetivo de – como disse – “fazer a cultura acontecer”. Porém, com a pandemia, foi preciso fechar a casa e cancelar a agenda já programada, sendo que há meses os principais eventos do espaço já não vinham sendo realizados – um deles, o “Graffiti Absurdo”, costumava trazer artistas de todo o país e já havia sido cancelado em 2019 por dificuldades financeiras. Entre as poucas atividades ainda realizadas estavam o “Mesão de desenhos”, às quartas-feiras, e a galeria de arte ainda mantinha-se aberta.

Depois de março, até mesmo os ensaios fotográficos foram suspensos, e as atividades que estavam na agenda foram adiados. Para piorar, os moradores – que trabalhavam em dois dos setores mais afetados pela pandemia, o de bares e casas noturnas – ficaram desempregados. Aí veio o drama do aluguel: chegaram a conseguir um desconto no valor por três meses, a partir de maio, mas tudo piorou em setembro: o aluguel foi reajustado e a imobiliária responsável por tratar do imóvel com os inquilinos foi irredutível quanto a negociar um novo desconto.

“Tentamos estender o desconto até o final do ano, conversar diretamente com o proprietário, mas ele havia deixado por conta da imobiliária. E piorou quando fomos pagar o aluguel este mês, falaram que o valor tinha aumentado. Foi um desespero muito grande, pois fomos pegos de surpresa. Eles seguiram inflexíveis, argumentaram que as atividades estão voltando ao normal, mas a nossa área (bares e casas noturnas) ainda não voltou”, justifica Noêmea. “Tentamos várias alternativas, como vender coisas da casa por meio de um bazar, a lei da Funalfa que daria apoio aos artistas e coletivos, mas não deu tempo. Foi preciso então encerrar formalmente, pois não teríamos mais como pagar o aluguel. O IPTU daqui é caro, as contas em geral são caras, é uma casa antiga que requer manutenção constante, foi tudo virando uma bola de neve. Mas nunca atrasamos aluguel ou demos problema, ainda fizemos todas as melhorias por conta própria, nunca nos ajudaram”, lamenta.

Casa no Bairro Granbery está sendo pintada para ser entregue (Foto: Leonardo Costa)

Até 11 de outubro

Com a formalização da entrega da casa, os atuais moradores têm até 11 de outubro, quando entregam as chaves, para conseguir o montante necessário para o último aluguel, pintura e reparos necessários. Todavia, o valor arrecadado com o bazar, mais o auxílio emergencial do Governo que estão recebendo – e que agora foi reduzido para R$ 300 – não serão suficientes para todos os gastos.

Uma outra solução encontrada pelo grupo para fechar as contas e sair da CasAbsurda com dignidade foi o crowdfunding. Noêmea explica que muitos amigos ou antigos moradores da casa se mostraram interessados em contribuir adquirindo alguma coisa pelo bazar, mas os custos com frete tornavam a alternativa inviável. Foi então que a vaquinha virtual entrou na área.

“Esse pessoal queria contribuir de alguma forma, então alguns amigos sugeriram a vaquinha, porque a pessoa poderia colaborar com diversos valores. Não era nossa intenção no início, com medo de não dar certo, e também por pensar que vendendo (no bazar) estaríamos dando algo em troca. Mas fomos convencidos e resolvemos fazer a campanha, que teve início no domingo (20). E o retorno foi surpreendente e incrível, pois já batemos em poucos dias 70% da meta. Acabou por se tornar uma forma de outras pessoas poderem contribuir”, comemora.

Além de participar como artista, Paula Duarte costumava frequentar a CasAbsurda (Foto: Arquivo pessoal)

Artistas lamentam o fechamento

Muitos artistas que passaram pelo espaço, assim como os frequentadores, só ficaram sabendo do fim da CasAbsurda com a postagem no Instagram, mas Noêmea pôde reforçar o sentimento de dever cumprido pelas respostas recebidas desde então. “Temos recebido muitas mensagens de pessoas gratas pelo que a casa fez, nos dá aquela certeza de que valeu a pena o que foi feito. Desde a postagem tivemos um boom de mensagens e contribuições, mas os agradecimentos dos frequentadores e artistas são mais importantes que as contribuições”, diz.

Alguns artistas-frequentadores deram seus depoimentos a respeito do fim da CasAbsurda e de sua importância para o cenário cultural de jufas, como a fotógrafa Paula Duarte. “Frequentei a CasAbsurda há muitos anos atrás, quando uma fotógrafa muito querida, a Rizza, morava lá. Em 2018, participei da mostra coletiva ‘Verniz’. É legal perceber como a Absurda ajudou a construir o cenário cultural de Juiz de Fora ao longo do tempo, e como sempre foi um espaço de troca. Eu ia pela troca afetiva com uma amiga, e ao mesmo tempo pela troca artística porque não separamos as duas coisas. Perder um espaço de troca artística e afetiva num momento político no qual há censura e perseguição à cultura não é fácil. É um ciclo que se fecha deixando saudades.”

O DJ Crraudio, do coletivo de artistas negros Makoomba, participou de vários eventos, como as rodas de MCs e outros fora do universo do hip-hop, além de uma festa beneficente da própria Makoomba. Ele também foi convidado por Guilherme Borges para participar da organização da “Verniz”, mostra coletiva de artistas negros que aconteceu em 2018 no espaço cultural no Granbery.

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“Foi importante ter a CasAbsurda como local que abrigou todas essas manifestações artísticas, pois a ‘Verniz’ foi uma mistura de festa e vernissage em que pudemos dialogar com um público que não teria a possibilidade de estar num ambiente com obras tão variadas. A casa oferecia diversas possibilidades de linguagens, e por isso vejo o quanto essa perda é profunda para Juiz de Fora e a galera que tenta inovar com outras linguagens. Uma integrante do Makoomba morou lá por um tempo, trabalhei no Muzik com vários moradores da casa. É bom poder ver o quanto ela acrescentou na cultura local e o papel importante na minha caminhada como artista.”

Nascida no Rio de Janeiro, a artivista (como prefere se definir) Renata Dorea se mudou para Juiz de Fora em 2014 a fim de cursar a faculdade de artes e design, e sempre gostou de conhecer a cena cultural da cidade. Dos lugares que frequentou, a CasAbsurda era um dos seus espaços favoritos para a acompanhar o que rolava no cenário artístico local.

“Era um lugar que sempre tinha as portas abertas, toda grafitada, pichada, com um pessoal muito receptivo. Eu participava dos ‘Mesões de desenho’, que tinha muita gente importante na cena do graffiti e que fizeram parte da minha formação como grafiteira e artista visual. E o ‘Graffiti Absurdo’, pra mim, foi o evento mais representativo, uma escola maravilhosa de arte urbana. Vai fazer muita falta”, afirma Renata, que foi outro nome a ajudar na organização da mostra “Verniz”.

“Foi um dia mágico, em que vimos essa juventude reunida criando arte. E a cidade é uma explosão de talentos, como a MC Xuxú, Paula Duarte, RT Mallone, entre tantos artistas cabulosos e que tiveram relação com um espaço que foi tão importante. Vou tentar colaborar com a campanha (de crowdfunding) de algum modo, pois é preciso valorizar não só os artistas, mas também as casas, pois são graças a esses lugares que conseguimos nos estabelecer nossa carreira, nossos nomes. Ela sempre estará na memória de quem vivenciou esse lugar. Que novas CasAbsurdas reabram e continuem existindo.”

Espaço recebeu durante anos diversas expressões artísticas, como a performance da atriz Carol Gerhei (Foto: Paula Duarte/Divulgação)

Passos atrás

Além de lidar com a burocracia e a correria para fechar as contas antes de entregar a chave, os atuais residentes da CasAbsurda precisam lidar ainda com outras dores: saber que o sonho teve fim e buscar um novo lugar, ainda mais quando por “novo lugar” pode-se entender ter que dar alguns passos para trás. “Gostaríamos de ficar na cidade, mas para alugar outro lugar precisa de renda, fiador… Cada um vai para um lado. Eu provavelmente devo voltar para a casa da minha mãe em Ouro Branco, pois vim pra cá para estudar na UFJF. Alguns vão para a casa de amigos por algum tempo, outra moradora está procurando república. Há dez anos que moro em Juiz de Fora, é muito complicado me ver dando vários passos para trás”, lamenta Noêmea.

“Abandonar um projeto de vários anos, que foi feito aos poucos, sem apoio nenhum, só tentando fazer a coisa acontecer, é muito triste e doloroso. Há um pouco de sentimento de derrota, mas tentamos colocar na cabeça que o que fizemos foi muito bem feito, foi uma conquista gratificante, demos o máximo de apoio possível aos artistas da cidade. Cada pincelada de branco sobre um grafite ou outro trabalho é muito doloroso, é como se apagasse tudo que aconteceu. Mas buscamos não deixar a tristeza tomar conta, pois fizemos muita coisa. Nunca vamos desistir da cultura.”

 

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