‘O Brasil se conhece através das novelas’, diz pesquisador explicando sucesso das reprises

Professor e pesquisador Mario Abel Bressan Junior explica o fenômeno de audiência da reprise de novelas que marcaram época


Por Mauro Morais

16/09/2020 às 06h55

Professor da Unisul, Mario Abel Bressan Junior aponta para a importância social e histórica das novelas, tanto coletivamente quanto individualmente. (Foto: Divulgação)

Transmitida há menos de cinco anos, a novela “Êta mundo bom!”, que ocupou a faixa das 18h da Globo, voltou a atrair telespectadores em sua reprise, nas tardes do “Vale a pena ver de novo”. Seu último capítulo, exibido na última sexta-feira atingiu 25 pontos na audiência da Grande São Paulo, recorde para a faixa na última década. Sua substituta, “Laços de família”, exibida originalmente em 2000, também estreou nesta segunda, 14, com audiência considerada bastante alta, com 21 pontos.

Em tempos de reprises na maior rede da televisão aberta no país, a novela atualmente no ar, “Totalmente demais”, da faixa das 19h, superou, na última semana, a audiência do “Jornal Nacional”, atingindo 31 pontos, diante de 29 do telejornal. “Fina estampa”, por sua vez, lançada em 2011 e hoje ocupando mais uma vez o horário nobre, concentra um número de espectadores maior do que “Amor de mãe”, produção interrompida pela pandemia.

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O fenômeno, no entanto, não traz uma grande novidade, já que desde 2010, quando foi criado, o canal Viva, da Globosat, figura nos primeiros lugares de audiência da TV por assinatura no país. Nos últimos meses, superando a GloboNews, foi o canal mais visto com suas muitas reprises. O que significa essa realidade? Para responder a questão, o jornalista e pesquisador Mario Abel Bressan Junior dedicou e dedica alguns anos de sua vida.

Professor da Universidade do Sul de Santa Catarina, a Unisul, e autor de livros como “Memória teleafetiva” e “Semiótica do crime: a semiótica da narrativa na telenovela”, ele é o convidado desta quarta, 16, às 18h, do V Seminário Memórias, Nostalgias e Imaginários, do Grupo de Pesquisa Comunicação, Cidade e Memória da UFJF, que acontece em formato virtual, via aplicativo Zoom e YouTube. Em entrevista à Tribuna, por WhatsApp, o professor e pesquisador adiantou o debate e explicou o saudosismo que transborda da televisão e invade as casas brasileiras.

Tribuna – Como justificar a liderança na audiência da TV paga do canal Viva?
Mario Abel Bressan Junior – O canal foi criado, há dez anos, pela Rede Globo para satisfazer uma necessidade da dona de casa e exibir seus programas antigos, com foco, principalmente, nas novelas antigas. Só que o canal, em seu primeiro ano, já virou um sucesso. Muitas pessoas querendo assistir, principalmente no horário da meia-noite. No início, a programação das telenovelas ficava no entorno das 23h e reprisava sempre ao meio-dia. Começou a ter uma audiência muito participativa, e o canal passou a crescer, não só com as donas de casa, mas com homens e jovens, que também queriam assistir novelas antigas. O mais interessante foi, justamente, o movimento que se deu nas redes sociais do canal. No Facebook, no Twitter e, posteriormente, no Instagram, muitas pessoas suplicavam por uma programação, para a Viva reprisar tal programa e tal novela. Então, sempre que anunciavam que a novela X ia começar a ser exibida, havia uma enxurrada de comentários, uns elogiando e outros pedindo outras. O sucesso do canal Viva se deve ao fato de essas pessoas se sentirem bem ao verem certas cenas, consequentemente sentindo suas nostalgias e suas memórias afetivas. Parto do princípio que, além de uma memória afetiva – ou memória teleafetiva, que é um conceito que crio – o canal é um sucesso porque as pessoas gostam de revisitar esse tipo de programação. O canal cresce e tem novelas em que ou ela fica na liderança ou fica entre os cinco canais mais assistidos.

No ar atualmente, no horário nobre da Globo, “Fina estampa”, mesmo polêmica, ultrapassou em audiência sua antecessora, “Amor de mãe”, interrompida por conta da pandemia. (Foto: Divulgação/Globo)

Em sua pesquisa o que identificou como crucial na interação via redes sociais dos telespectadores do Viva?
O brasileiro gosta de trabalhar a produção transmidiática. A segunda tela no Brasil funciona muito bem, porque as pessoas estão twittando sobre coisas que estão assistindo no streaming, na TV aberta ou na fechada. E vejo que é uma necessidade do espectador de falar com alguém sobre o que está assistindo. Acontece muito nos fatos sociais e políticos. As redes sociais dão voz a todo mundo. As pessoas vão e comentam sobre o que gostariam de falar em público. Em relação à televisão, aquilo que o (sociólogo Dominique) Wolton dizia sobre o laço social, de as pessoas estarem unidas, assistindo a uma programação, na rede social continuamos percebendo esse laço social, só que, agora, sabemos quem são as pessoas, conseguimos quantificar, identificar perfil. Aquela conversa sobre a programação que ficava restrita às famílias, aos grupos de trabalho, hoje ganha o mundo através das redes sociais. E isto vejo que é uma característica do ser humano: estar contando o que está assistindo, compartilhando sentimentos. Em relação ao Viva, elas acabam pedindo a programação, elogiam, criticam e falam muito de suas memórias, do que estão lembrando ao assistir determinadas cenas. Há uma necessidade de contar, nas redes, sobre suas próprias memórias, a emoção que sentem.

Com remake anunciado pela Globo recentemente, “Pantanal” é uma das novelas que, segundo Mario Abel Bressan Junior, contribuiu para que o Brasil reconhecesse a si próprio. (Foto: Divulgação/Globo)

O que entende por memória teleafetiva? E o que ativa essa memória no brasileiro?
Memória teleafetiva é um conceito que crio em minha tese de doutorado, em comunicação social na PUC de Porto Alegre. Minha conclusão é a de que com a televisão não temos só a memória afetiva, mas uma memória que é teleafetiva, porque a televisão tem características próprias, que fazem dela um elemento muito importante na constituição de memórias e na evocação de memórias. Quando estudamos o conceito de memória coletiva, como se formam as memórias, discutimos que as memórias são constituídas por meio do coletivo. Estamos sempre inseridos em contextos sociais e vamos lembrar de acontecimentos, pessoas que estão à nossa volta. Defendo que a televisão é um desses elementos que estão conosco em nosso cotidiano. Ela faz parte de nosso dia a dia. E, anos depois, ao lembrarmos de alguma coisa, ela vem e traz uma recordação. Na memória teleafetiva a televisão funciona como o lugar que também ajuda a constituir memórias, e evoca, tempos depois, com uma imagem e com um som, uma recordação. Por isso a sua força. A memória teleafetiva tem uma pulsão muito forte e traz o passado exatamente como era antes. Uma criança que assistiu ao “Xou da Xuxa”, por exemplo, via o programa enquanto aconteciam coisas com ela ao seu redor, seja o relacionamento com a mãe, com os coleguinhas, na escola. Trinta anos depois, ela vê as mesmas imagens, que trazem um contexto e a pessoa que assiste não é mais a mesma. Essa carga emotiva é muito forte. A memória teleafetiva reconstitui um laço social formado lá atrás.

“Tieta”, de 1989, é uma das novelas de maior audiência na história do Viva. (Foto: Divulgação/Globo)

Durante a pandemia a Rede Globo se viu forçada a reexibir telenovelas antigas. “Fina estampa”, por exemplo, tem rendido bons pontos de audiência. Como avalia essa experiência atual?
Percebo que há uma aceitação interessante, porque as pessoas gostam de rever e se ver de novo naquela história. Essa novela mostra os objetos, as personagens, a trilha sonora, e os espectadores se deparam com o celular daquela época, o carro, as músicas, e, consequentemente, lembram de fatos e situações que viveram em 2011. Essas lembranças são muito fortes e por isso o prazer de rever. Não sei se vai funcionar da mesma forma com a novela que vai vir agora (na sequência de “Fina estampa”), que é “A força do querer”, há pouco tempo exibida, há quatro ou cinco anos. Vejo que quanto mais antiga a novela, mais pulsões nas memórias teremos. Funciona como gatilhos de sentimentos, emoções e afetos. Isso funcionou muito bem na Globo, ainda, com as reprises das finais das Copas, do Ayrton Senna, porque mesmo as pessoas sabendo o resultado, estavam revendo e lembrando onde estavam e com quem estavam.

A internet possui um recurso de preservar a memória jamais visto, ainda assim, não é o bastante para substituir as reprises na TV. O que justifica essa prevalência da televisão? E como o ambiente virtual se relaciona com a mídia televisiva?
A internet é um banco de arquivos, onde as pessoas podem relembrar de fatos a qualquer momento, mas a televisão tem uma característica própria. As pessoas gostam de ver de novo numa programação. Quando essa programação é algo imposto, no caso do Viva ou na Globo agora, existe uma aceitação que é bem-vinda, porque a televisão tem a característica de estar de novo como presença do espectador. Mesmo o YouTube sendo considerado uma TV, é diferente quando vou lá e escolho o que quero assistir. Às vezes lembramos de algum episódio e revisitamos, mas quando vem da ordem de uma emissora, é mais forte. O telespectador gosta e precisa de uma programação para se perceber e estabelecer um sentido com horário, duração. Foi muito legal quando estreou a última temporada de “Game of thrones”. As pessoas podiam ver no on demand, mas havia uma mobilização de estarem todos, num determinado horário do domingo, acompanhando juntos. Isso demarca uma presença. A programação cria sentido.

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“Êta mundo bom”, que terminou na semana passada, na faixa do “Vale a pena ver de novo”, teve a maior audiência de um capítulo final desde 2003. (Foto: Divulgação/Globo)

A TV no Brasil completa 70 anos nesta sexta, período no qual viveu intensas transformações e acompanhou mudanças estruturais do país. Em sua análise, é possível traçar um retrato do Brasil a partir de sua produção de telenovelas? Essa memória das telenovelas guarda também a memória nacional?
Com certeza podemos acompanhar uma transformação do Brasil em função das programações e, também, das telenovelas, que é o produto cultural mais visto no país. A telenovela tanto dita culturas, quanto reproduz culturas. O Brasil se conhece através das novelas. O sucesso de “Pantanal”, mostrando uma região não explorada é um exemplo. Ela tem uma função muito importante nesses 70 anos da televisão no Brasil. São quase 70 anos de telenovelas também. Começou com elas ao vivo, uma vez por semana. E trouxe uma representação muito forte. As telenovelas guardam, sim, uma memória nacional muito forte, porque mostram os momentos daquele Brasil. Peguemos “Vale tudo”, em 1988, que mostrou o país daquela época. E, hoje, disponível no Globoplay, as pessoas assistem e reconhecem o período, trazendo para a atualidade.

V Seminário Memórias, Nostalgias e Imaginários
Debate com o professor Mario Abel Bressan Junior nesta quarta, 16, às 18h, em formato virtual, via aplicativo Zoom e YouTube

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