Retrato do artista enquanto (muita) coisa

Jornalista Toninho Vaz fala sobre a biografia de Luiz Melodia


Por Júlio Black

02/09/2020 às 07h00

Dentre as incontáveis estrelas que compõem a galáxia da MPB, Luiz Melodia é dos nomes mais importantes pela sua personalidade, talento ímpar, influência, autenticidade e perenidade (êta, palavra bonita) de sua obra. Morto em agosto de 2017, aos 66 anos, vítima de câncer, o cantor e compositor carioca já pode ter toda sua trajetória conhecida, relembrada e descoberta em “Meu nome é ébano: a vida e a obra de Luiz Melodia”, do jornalista, escritor e biógrafo paranaense Toninho Vaz, biografia lançada em 4 de agosto _ exatos três anos depois de Melodia partir _ pela editora Tordesilhas.

Para lançar “Meu nome é ébano: a vida e a obra de Luiz Melodia”, autor fez 64 entrevistas, além de extensa pesquisa (Foto: Wandyr Fortunato)

A publicação é resultado de dois anos de muito trabalho por parte de Toninho, que fez nada menos que 64 entrevistas com amigos e parentes de Luiz, além de extensa pesquisa em jornais, revistas e meios digitais. Com pouco mais de 300 páginas, o livro retrata a vida do artista do seu nascimento como Luiz Carlos dos Santos no Morro de São Carlos, no bairro carioca do Estácio, a momentos importantes como a infância no morro e suas primeiras composições; a descoberta por parte de nomes como Torquato Neto e Wally Salomão; a gravação de “Pérola negra” por Gal Costa; o primeiro álbum, também chamado “Pérola Negra”; as diferenças criativas com as gravadoras, que deram a ele a pecha de “maldito”; seus relacionamentos amorosos; os shows bem-sucedidos; os altos e baixos e a volta por cima de uma carreira de poucos e geralmente elogiados álbuns; até chegar ao fim de sua vida, acompanhado pela esposa de três décadas, Jane Reis.

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Fã do cantor e compositor, Toninho Vaz não fazia parte da roda de amigos de Luiz Melodia. Ele conta que seus encontros com o artista foram apenas dois: uma vez quando vizinhos, e outra em 2003, para uma entrevista de meia hora para a biografia que preparava sobre Torquato Neto. A oportunidade de escrever a biografia surgiu graças ao guitarrista e violonista Renato Piau, parceiro musical e amigo de longa data de Melodia. “Em 2018, ele me falou ‘amanhã (4 de agosto) faz um ano de morte do Luiz, vai ter missa de um ano na Igreja de São Conrado, vamos lá que eu quero te apresentar a Jane, a viúva’. Então eu fui, e depois da missa fui para a casa em que eles moravam, e lá o Renato me apresentou e disse: ‘se um dia for fazer uma biografia, que seja através dele. A Jane reagiu bem, disse para ficarmos à vontade, e comecei o trabalho”, relembra.

Toninho Vaz logo começou a trabalhar na biografia. No início, com a ajuda de uma produtora, marcou as entrevistas e também passou o primeiro ano pesquisando sobre a carreira e vida de Melodia. O segundo ano foi reservado para colocar tudo em ordem e escrever o livro, que teve seu lançamento exatamente três anos após a morte do cantor e compositor.

Sem censura

Um ponto importante para o biógrafo é o fato de que a família, em momento algum, interferiu no seu trabalho. Depois de ter o aval de Jane Reis para fazer a biografia, ele diz que ela não pediu sequer para ter acesso ao livro antes de ir para a gráfica. “Não tive nenhuma censura por parte da família, e para quem escreve biografias isso é inestimável. No caso do Paulo Leminski (outro artista biografado por ele em “O bandido que sabia latim”), tive muitos problemas com a família dele, tanto que a biografia está fora de catálogo há sete anos, não temos como publicar uma nova edição porque não permitem publicarmos as poesias”, compara. “Eu acredito que a Jane ainda não tenha lido livro. Ela ainda está emocionalmente muito abalada pela morte do Melodia, o amor que eles tinham era muito forte. Na última das várias entrevistas que fizemos, ela chorou o tempo todo, porque era sobre a morte do Luiz. Ainda era muito doloroso.”

Segundo Toninho, amigos que ele tem em comum com Jane Reis já falaram para ela que terminaram o livro – o que, a princípio, deveria servir de incentivo, porém… “Disseram que era lindíssimo, aí que ela não quis ler mesmo (risos). Mas estou tranquilo, porque procuro equilíbrio nesses trabalhos. Ele podia beber muito, usar drogas, mas era uma cara que nasceu na favela e construiu tudo o que conseguiu.”

Uma estrela da era digitalizada

Ter que lidar com os melindres, polêmicas e fidelidade aos fatos em uma biografia não é novidade para Toninho Vaz, que, além das biografias de Luiz Melodia, Torquato Neto e Paulo Leminski, também pesquisou sobre a vida de Zé Rodrix e contou a história da pensão em Botafogo, na Zona Sul do Rio, que recebeu diversos músicos, poetas, atores, jornalistas e meio mundo das artes em “Solar da Fossa: Um território de liberdade, impertinências, ideias e ousadias”.

Há diferenças também quando se pensa no momento em que cada livro foi escrito. Ele explica, por exemplo, as diferenças em contar a vida de Torquato Neto, morto no início dos anos 70, e a de Luiz Melodia, numa época em que a informação está ao alcance do celular. “Primeiro, são dois personagens diferentes. O Torquato é uma coisa que estava embaixo dos panos, não era o protagonista nem mesmo do Tropicalismo, do qual foi um dos pilares do conceito, dos principais compositores, mas os protagonistas eram o Caetano Veloso, Gal Costa, Gilberto Gil. O Melodia era um ídolo popular, então era necessário apenas retratar um artista popular. E no caso do Torquato era ainda menos atraente comercialmente, porém tem uma história rica e que precisa de uma abordagem bem diferente: tem que contar para o leitor quem era ele, fazer uma pesquisa maior – ao contrário do Luiz, em que a maioria das pessoas ainda estão vivas”, pontua. “De qualquer forma, meu interesse pelos personagens das biografias que fiz são muito pessoais, nunca me preocupei em vender livros. Quem se preocupa com isso, e com toda a razão, é a editora. O importante, para mim, é a riqueza do personagem; isso que norteia minhas escolhas.”

Outra diferença é a tecnologia. Para escrever sobre o autor de “Estácio, Holly Estácio”, Toninho Vaz pôde aproveitar o fato de que Melodia já é um produto de uma era digitalizada. “A quantidade de arquivos que você encontra sobre o Luiz é assustadora. São entrevistas, vídeos dele cantando com a Gal Costa ou a Angela Ro Ro. Para captar as nuances do artista é uma mão na roda, o cara está ali falando para você.”

 

Difícil, maldito

Como não fez parte do círculo de amigos do cantor e compositor carioca, Toninho Vaz obviamente pôde conhecê-lo melhor por meio das pesquisas, entrevistas e, assim, entregar um livro que segue a mesma regra dos anteriores: sempre procurar a fidelidade. “Não conheci o Luiz para ter uma opinião sobre ele. Na entrevista no Canecão vi um sujeito simpático, calmo, prestativo, buscando se lembrar de um sujeito que morreu há muito tempo (Torquato Neto). Depois, com as pesquisas, entrevistas – como no caso da Jane, com perguntas sobre a intimidade, e com o Renato Piau -, as pessoas transmitem várias nuances. A primeira informação está na internet, mas as pessoas que conviveram com ele é que fornecem essas nuances; as brincadeiras em casa imitando o Caetano Veloso, o amigo Drô, o (jornalista) Marcelo Rezende. São coisas que falam mais do personagem que qualquer discurso de cunho propagandístico deste personagem.”

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Luiz Melodia ganhou fama de “difícil” e “maldito” por vários motivos, entre eles a inflexibilidade quanto à integridade artística na relação com as gravadoras. Por um lado, isso fez com que a obra do artista carioca não tivesse um alcance e sucesso obtidos por outros nomes. Perguntado se ele poderia ter maior sucesso comercial caso as gravadoras “trabalhassem” melhor com ele, Toninho Vaz diz que essa seria “a tempestade ideal”.

“As gravadoras se metiam na carreira do artista jovem porque, muitas vezes, eles não sabiam o que fazer, mas no caso do Luiz era diferente. Ele não aceitava o que muitos aceitavam no início de carreira. Se ele perdeu em produtividade com esse comportamento, ganhou em autenticidade; fez um trabalho que ganhou um cunho personalista, porque ele era forte nesse sentido. Mas não era um perfeito condutor desse comportamento, teve suas falhas, mas as gravadoras também. Muito do que ele ganhou de fama de ‘difícil’ fazia parte do jogo. Mas o Luiz não se deixava dirigir, fez tudo da melhor maneira que podia fazer.”

Por isso mesmo, é impossível não perguntar ao final da conversa: mesmo com uma morte ainda tão recente, qual é o legado de Luiz Melodia para a música brasileira? “Eu acho que o legado que ele deixou é grande sob vários aspectos. A possibilidade de uma pessoa da periferia, favelada, criar um trabalho notável para nossa cultura, já justifica essa existência. Mas há outros pontos de vista a analisar fora da música, como a postura dele diante das adversidades, do racismo, a luta pra ser inserido no mercado e na vida em uma cidade como o Rio de Janeiro, em que muitos moram nos morros, na periferia, e ele foi um agente estimulador e pacificador entre o morro e a cidade.”

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