O Universo Guará chegou; será que vai ser infinito?

Por Júlio Black

02/09/2020 às 07h00 - Atualizada 28/08/2020 às 14h07

Oi, gente.

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A Guará Entretenimento lançou em 2019 três títulos que faziam parte do que chamamos de “Guaráverso” (“Guaraverso”?): “Pérola”, “Santo” e “Os Desviantes”. Na época, escrevemos uma coluna sobre os títulos, destacando que estavam no mesmo universo que o já conhecido Doutrinador. Mas aí veio a polêmica com Luciano Cunha, criador dessa equivocada versão BR do Justiceiro, que se desligou do grupo após queimar seu filme com meia comunidade dos quadrinhos, e não tivemos mais notícias nem lançamentos com os demais personagens, que não tinham nada a ver com as inspirações de extrema-direita do Doutrinador.

Se o “Guaráverso” (“Guaraverso”?) está suspenso, cancelado, não sabemos, mas o fato é que a editora reapareceu no mercado com novo nome (Universo Guará) e quatro títulos que já chegaram à segunda edição desde seus lançamentos, em julho: “Teocrasília”, “Cidadão Incomum”, “Ecos” e “Eu sou Lume”. Também chegaram com um novo lema, “O universo é infinito”.

Das quatro revistas, obviamente “Teocrasília” é a que chama mais atenção por causa do avanço da extrema-direita no Brasil. O trabalho de Denis Mello (roteiro e arte) mostra um futuro despótico em que o país se tornou uma teocracia comandada por pastores corruptos, mentirosos e exploradores, resultado de uma sequência de eventos que incluem as manifestações de 2013, o impeachment da presidente “Mirna Douvert”, uma guerra civil, a eleição do execrável “Capitão Malenda” e que culmina com a Bancada da Palavra – formada pelos tais pastores corruptos, mentirosos e exploradores – assumindo o poder, rebatizada como o Divino Altar.

A ditadura religiosa varre do dicionário e da lei as liberdades de expressão, pensamento, cultural, de prática de religiões não-cristãs e torna o Brasil um pesadelo ainda pior que o de 2020, mas não impossível se pensarmos nos atuais rumos da nação. Uma nova Constituição é escrita, só para deixar claro que a religião acabou com qualquer rastro do Estado laico. Poucos são os que ainda tentam escapar das garras da teocracia, e entre eles está um grupo que funda uma comunidade de resistência, o Retiro Solidário Laico.

Com ilustrações em preto e branco, “Teocrasília” tem ainda um prefácio que pode ser baixado de graça no site da Universo Guará –  é a revista publicada ilegalmente pela resistência na HQ e serve para orientar o leitor, pois “Teocrasília” já começa mostrando o futuro ainda mais sombrio que podemos ter de encarar.

Distopias que mostram um futuro sombrio, com o Estado laico sendo substituído por teocracias sanguinárias, viraram moda na cultura pop desde que “O conto da aia” voltou a cair nas graças do povo por causa da série “The handmaid’s tale”, mas sentir essa possibilidade tão próxima da nossa realidade dá um mal-estar imenso. Neste caso, toda semelhança não é mera coincidência, basta acompanhar os noticiários ou assistir a determinados programas religiosos para ter uma (triste) ideia.

“Cidadão Incomum”, por sua vez, é mais próximo do gênero HQ de super-heróis, porém com pegada local. Pedro Ivo é o sujeito que manda ver no roteiro e arte do personagem-título, alter ego do jovem Caliel (Kal-el?), que não tem a menor ideia de como ganhou os poderes de voar e soltar raios de energia pelas mãos e ficou forte feito o Superman (talvez nem tanto, mas eu que não saio na porrada com ele). Mas é aquilo, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades e lá vai o rapaz combater o crime, com seu colega de apartamento dando umas dicas para não fazer besteira.

As duas primeiras histórias mostram o Cidadão Incomum tendo que enfrentar – apesar da inexperiência – um sujeito que tentou assaltar um ônibus e conseguiu fugir dos policiais depois de ter sido preso pelo heróis. A trama encontra tempo, ainda, para discutir temas como desigualdade social, direitos humanos e violência policial.

Se faltou uma coisa em “Cidadão Incomum” foi um pequeno resumo da trajetória do protagonista, que veio das páginas do livro homônimo e a história já começa com o rapaz em ação. Um pequeno “previously” ajudaria na compreensão de uma HQ promissora.

Uma introdução mais completinha também seria a famosa mão na roda para a leitura de “Ecos”, do trio Lauro Kociuba (roteiro), Rapha Pinheiro (desenhos) e P.R. Soliver (arte-final). No primeiro episódio, “Caminhos desencontrados”, ficamos sabendo que rolou uma treta entre humanos e máquinas, que venceram o quebra-pau e, depois, foram cuidar da própria vida e mandaram um “te vira, malandro” pra galera, que aí precisa dar seus pulos para sobreviver entre os escombros da civilização.

É nesse cenário nada hospitaleiro que encontramos os protagonistas de “Ecos”, Kenneth e Alev. Os dois vivem na Torre, uma estrutura que lembra os prédios de “A bela morte”, de Mathieu Bablet, porém enterrada na terra e onde parece que as castas “superiores” vivem nos andares inferiores, e quanto mais pra cima, maiores as dificuldades e menores as quantidades de comida decente. Ou seja: quanto mais fundo no buraco, melhor.

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Mais que descer o buraco, porém, a dupla quer mesmo é sair da Torre. E a oportunidade parece vir por meio de uma mensagem via holograma, que dá aos protagonistas uma missão que os levará, pelo menos, para bem longe do buracão. Aguardamos as próximas edições para saber aonde esse povo vai se enfiar.

A última série da lista é “Eu sou Lume”, de PJ Kaiowa. A HQ é mais uma a apostar em super-heróis vivendo em um país de desigualdades sociais, e é bem legal. Imagine que a Mulher-Maravilha fosse negra, adolescente, pobre e morasse numa comunidade como o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, tendo que enfrentar monstros ao mesmo tempo em que precisa descobrir de onde vieram seus poderes e lidar com o preconceito de ser uma aluna cotista numa escola de classe alta.

Dá para perceber que a premissa é boa, e PJ Kaiowa manda bem nas duas edições, deixando a pancadaria em segundo plano e mais preocupado com os dilemas da juventude e discussões sobre diferenças de classe, racismo e outros paranauês – e com direito a uma personagem que claramente homenageia a vereadora Marielle Franco, executada em 2018.

“Eu sou Lume” tem alguns defeitos, como não contextualizar a origem da protagonista e encerrar as edições sem um gancho para o que vem a seguir, mas são detalhes que só vão estragar a leitura se o sujeito for muito chato.

Torcemos para que o Universo Guará tenha chegado para ficar, pois potencial é o que não falta.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

Júlio Black

Júlio Black

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