Jornalista Daniela Arbex lança biografia da médium Isabel Salomão de Campos
Uma humanista: Escritora lança nesta sexta “Os dois mundos de Isabel”, sua primeira biografia, na qual retrata trajetória da médium Isabel Salomão de Campos
A voz embarga. Um arrepio. “Minha história. Todas as escolhas que fiz na minha vida e dentro do jornalismo estão profundamente ligadas ao que ela é e me ensinou”, emociona-se a jornalista e escritora Daniela Arbex ao falar de uma amiga com a qual dividiu as últimas três décadas e que, agora, torna-se sua primeira biografada. Em “Os dois mundos de Isabel” (Intrínseca), livro com prefácio de Caco Barcellos e lançamento nesta sexta (21), às 18h, na conta do Instagram da editora (@intrinseca), Isabel Salomão de Campos tem seus 95 anos revisados em 300 páginas. Está ali a menina que aos 9 anos passou a conviver com os espíritos ainda morando numa fazenda da Zona Rural de Guarará, onde os pais, imigrantes libaneses, criaram uma pequena colônia. Estão, também, a médium à frente d’A Casa do Caminho, reconhecida mundo afora por seus tratamentos espirituais e casos de cura; a mulher corajosa e destemida, que enfrentou uma sociedade machista e a intolerância religiosa; a pioneira solidária, que acolheu cerca de 500 meninos em seu lar. Está ali, sobretudo, a humanista.
“Consegui ver aquela menina”, diz, emocionada, a jornalista, referindo-se à Isabel que não conheceu, a garota que aos 14 anos e tendo completado apenas o primário decidiu solicitar ao prefeito de sua pequena cidade que lhe permitisse abrir uma escola na fazenda dos pais. Em seu primeiro e grande empreendimento, Isabel lecionou para os filhos dos funcionários do lugar, 45 jovens de idades variadas, todos sedentos por aprender a ler e a escrever. “Ela é boa por natureza. Numa época em que o Brasil não sabia o que era o voluntariado, que só vem na década de 1990, ela já fazia há muito tempo. O exemplo dela arrastou uma multidão de pessoas que queriam e querem fazer o bem”, aponta Daniela, citando o Projeto Médicos do Bem, d’A Casa do Caminho, que está entre os 11 melhores do país no Prêmio Euro de Inovação 2020.
Certa de que a caminhada de Dona Isabel, como a médium ficou conhecida, não caberia num único livro, Daniela selecionou episódios que auxiliam o leitor a compreender uma existência de mãos estendidas. Não incluiu, porém, a passagem que conta, em entrevista por telefone, sobre o tempo em que ainda existia o Instituto Educacional Allan Kardec no terreno anexo à A Casa do Caminho e, portanto, ao lado da casa de Dona Isabel. Um dia, um menino de apenas 5 anos subiu os degraus e chegou à sala da morada da médium. Dizia ter um problema enorme, porque o pai não queria mais seus peixes em casa. Ele pedia ajuda. “Ela disse, traz os peixes para cá que eu cuido deles”, conta Daniela. “Essa é a mulher que faz isso para uma criança e, agora, aos 95 anos, para sua vida para enviar uma mensagem de esperança para um cientista australiano, que anunciou o suicídio assistido que iria fazer. O mundo inteiro fez uma vaquinha para ajudá-lo, e Dona Isabel, daqui de Juiz de Fora, mobilizou-se para levar uma mensagem de esperança na véspera da morte dele. Não queria que ele morresse sem ouvir algo de bom. E, pela primeira vez, não falou em Deus. Abre mão de falar em Deus, porque ele, como materialista, não entenderia a mensagem dela. A história dela vai muito além da religião”, defende a biógrafa em sua primeira incursão pelo gênero após três livros-reportagem de sucesso.
Leia trecho do livro “Os dois mundos de Isabel”
Não haveria de ser uma inimiga a biografar
De narrativa fluida e ágil, “Os dois mundos de Isabel” recompõe momentos marcantes na vida de Isabel Salomão de Campos, num retrato delicado e sensível da mulher, mãe de cinco, avó de doze e bisavó de doze. Também enumera, em relatos detalhados, histórias de atendimentos feitos pela médium ao longo da vida, alguns de cura, outros de encorajamento para mudança, outros, ainda, de diálogos com espíritos rebeldes. “Esse livro conversa com todos os outros que escrevi, porque também constrói a memória coletiva do Brasil. Estamos falando de uma brasileira quase centenária, com uma história extraordinária. É o registro da memória dessa mulher, empoderada e corajosa. Diferentemente dos outros livros, esse é familiar. E isso foi um dificultador, porque eu precisava encontrar um tom. Tinha a questão da imparcialidade jornalística o tempo todo me desafiando”, comenta a autora, para em seguida narrar o momento em que decidiu iniciar o projeto. Daniela chegava do Rio Grande do Sul, do lançamento de “Todo dia a mesma noite”, sobre o incêndio na Boate Kiss, e, visitando Dona Isabel falou de sua admiração pela história dela e pelo desejo de narrá-la. O que a impedia, no entanto, era o fato de serem amigas. “Uai! E tem que ser minha inimiga para contar a minha história?”, indagou Dona Isabel.
Com o mesmo fascínio com que reconstruiu os horrores do Hospital Colônia de Barbacena em “Holocausto brasileiro”, a trajetória do militante Milton nos anos de chumbo em “Cova 312” e as dores por trás do incêndio na Boate Kiss em “Todo dia a mesma noite”, Daniela conta uma vida que não conhecia em toda a sua integridade. Foram necessárias entrevistas diárias ao longo de um ano, a maioria delas no período noturno, quando Dona Isabel usava um respirador. “A familiaridade foi boa por causa do contato que tinha com ela, mas foi dificílima para construir a narrativa. Primeiro porque ela achava que eu já conhecia tudo e contava resumidamente os casos, o que exigia de mim um esforço muito grande para achar todas as pessoas que ela citava. Foi um trabalho essencialmente jornalístico”, explica a escritora, diante de mais de cem personagens, grande parte deles idosos, distantes das redes sociais, o que se mostrou uma dificuldade ainda maior. “Não sabia que ela benzia quando era criança. Desconhecia que no sertão mineiro tinha fila de pessoas procurando-a. Descobrir isso, ouvindo o depoimento de outras pessoas, foi um mergulho na alma dessa mulher”, observa a jornalista, que se prepara para ver um de seus livros ganhar o formato audiovisual e para, passada a pandemia, iniciar a apuração de seu próximo título. Segundo Daniela, seus dois próximos projetos literários já estão definidos, e um deles pode ser sua primeira incursão pela ficção, logicamente, amparada pelos fatos reais em que calçou sua trajetória.
‘Nada a parou’
No decorrer de seus 95 anos, Isabel Salomão de Campos foi reunindo projetos, ampliando ações e encarando novas frentes de trabalho. Hoje, já com a mobilidade reduzida por conta da idade, grava mensagens para o canal no YouTube d’A Casa do Caminho, que soma quase 200 mil inscritos e mais de 15 milhões de visualizações. Atualmente, também atende mais de 300 famílias mensalmente, o que faz há mais de cinco décadas, e coordena uma creche gratuita para crianças de zero a 3 anos em situação de vulnerabilidade social. “Nos 30 anos que a acompanho, nunca vi a Dona Isabel ser parada por alguma coisa”, aponta Daniela sobre a mulher que na década de 1940 tornou-se espírita, sendo que foi a partir dessa mesma década que o espiritismo tornou-se opção, nas fichas de recenseamento, de prática religiosa. Liderança anos depois, também rompia com uma sociedade machista, que apenas nos 1930 havia autorizado o voto feminino. “Ela nunca parou para perceber que havia algum tipo de intolerância ou invisibilização. Não tinha tempo. Ia fazendo, trabalhando. Hoje ela vê o quanto de pioneirismo tem na história dela. Ela não se prendia a isso, nem a convenção alguma. Ela fazia. Nada a parou”, avalia a biógrafa.
Ramiro, o homem com quem se casou em 1947, sempre esteve ao lado de Isabel. “É uma grande história de amor de duas almas que se respeitavam profundamente. Eles se reencontraram e o mais bonito é que ele usou toda a cultura que tinha para se complementarem. Ele foi amparando e protegendo ela, uma usina do bem. Eles nunca discutiram”, conta Daniela. Em 2004, aos 92 anos, Ramiro morreu. Mas não perderam o contato. Ele estava lá, como narra a biografia, quando a médium comemorou seus 95 anos ao lado de parte dos 500 meninos acolhidos pelo Lar do Caminho, projeto iniciado pela casa cinco anos após uma das mais marcantes visitas recebidas pelo lugar. “Nós estamos saindo de Juiz de Fora com o coração tocado de muita alegria, porque encontramos na Casa do Caminho um ambiente espírita autêntico. Uma reunião que está terminando na madrugada do dia 9 de agosto e não estamos sentindo o menor traço de fadiga, porque a alegria foi tão grande, a união foi tão grande, que o alimento espiritual nos reconfortou a todos”, registrou, em áudio, o médium Chico Xavier após visitar o local em 1976. Para Daniela, este é o grande legado de Isabel: “O bem que recebi e o bem que ela distribuiu vão ficar em cada coração”.
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