Covid-19: niilismo na Belíndia


Por Mário Sérgio Ribeiro Psiquiatra, doutor em Filosofia e professor aposentado da UFJF

14/07/2020 às 06h43

Como nos dizia Guimarães Rosa, “viver é muito perigoso”, uma compreensão trágica que, de alguma forma, está ausente das expectativas ora colocadas fortemente sobre a ciência e a tecnologia. A palavra de ordem “fique em casa”, expressão dos “ditames da ciência”, responde às necessidades de todos aqueles assolados pelo pânico e/ou pela culpa, enquanto deveria ter propiciado o tempo necessário para preparar nosso sistema de saúde para acolher as “inevitáveis vítimas” do novo vírus. Todavia a evolução da epidemia – e seu enfrentamento pelas autoridades competentes em nosso país – nos permite reconhecer uma indesejável continuidade do fenômeno da “Belíndia”.

De fato, não é por estar “acostumado a nadar no esgoto” que o brasileiro escaparia da Covid-19; mas, uma vez que ele está habituado a altas taxas de violência, criminalidade, mortalidade e distintas formas de desigualdade – inclusive no acesso à saúde e ao lazer -, seria de se esperar que a resposta ao isolamento social não fosse homogênea em diferentes segmentos da população brasileira, com necessidades, valores e desejos tão diversos entre si.

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Talvez resida aí uma das razões para a longa duração desta “primeira fase” da epidemia brasileira: enquanto a curva de novos casos (e de mortes) da Covid-19 parece começar a declinar em torno dos 30 dias em boa parte dos países (China, Japão, Coreia, Itália, Espanha, entre outros), no Brasil, após uma primeira queda em torno do 50º dia, os números voltaram a subir, sugerindo uma “segunda onda” de casos antes mesmo do término da primeira. Ainda que não tenhamos dados suficientes para confirmar esta hipótese, isto pode dever-se à progressiva contaminação das classes C e D, que não tiveram como se isolar adequadamente como as classes A e B, as primeiras atingidas pelo novo vírus.

Nesses meses, multiplicaram-se declarações, promessas, conflitos e medidas confusas por parte de nossas autoridades, mas, a rigor, e com honrosas exceções, a preparação dos sistemas de saúde não ocorreu conforme anunciado e esperado: lotação de hospitais e UTIs, mortes e cemitérios lotados vêm frequentando as mídias, sem falar das queixas da rede privada de subutilização de suas instalações e das incontornáveis denúncias de superfaturamento e outras fraudes já efetuadas durante o “regime de urgência”.

As três primeiras mortes por Covid-19 no Brasil, ocorridas num hospital que atendia prioritariamente a idosos, possivelmente contribuíram para o imaginário apocalíptico então em gestação. Também neste campo, as experiências da Itália e de vários outros países parecem não ter contribuído muito para a efetividade da resposta brasileira à epidemia: além de se multiplicarem os casos de verdadeira “epidemia de infecção hospitalar por coronavírus”, também são inúmeras as mortes de idosos em “instituições de longa permanência para idosos”, onde estas pessoas deveriam ser devidamente cuidadas e protegidas.

Viver é mesmo perigoso. Mas não há como assumir sua plena tragicidade sem a liberdade e autonomia pessoais de que boa parte dos habitantes da Belíndia e dos prisioneiros do niilismo reativo ainda carece.

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