Um Fla-Flu que não deveria existir

A realização do Campeonato Carioca apenas reforça qual é de fato a política de enfrentamento à pandemia: a imunidade de rebanho


Por Gabriel Ferreira Borges

14/07/2020 às 07h00- Atualizada 14/07/2020 às 16h25

Flamengo e Fluminense disputarão, nesta quarta-feira (15), no Maracanã, um jogo que não deveria existir. Não que o Flamengo deveria ter vencido o Fluminense na final da Taça Rio e liquidado o Campeonato Carioca. Tampouco este jogo deveria ter acontecido. A minha implicância não é com os tricolores por conta da prazerosa noite de sono de que gozaram na última quarta. Nem com os rubro-negros, a cada Fla-Flu mais orgulhosos com Pedro e sua crueldade para com o ex-clube. No entanto, os três Fla-Flus em sequência, em meio a mais de mil mortes diárias, mancham, no mínimo, a história do outrora clássico mais charmoso do Brasil. A realização do Campeonato Carioca simplesmente em paralelo à ascensão da curva epidemiológica apenas reforça qual é de fato a política de enfrentamento à Covid-19 adotada desde março pelas autoridades: a imunidade de rebanho.

Ainda que sem público presente nos estádios, o retorno do Campeonato Carioca deflagraria um processo de “volta à normalidade” depois de uma quarentena sentenciada ao fracasso desde o início. Três jogadores do Volta Redonda relacionados para o confronto contra o Fluminense em 28 de junho testaram positivo poucas horas antes da partida. Embora tenham mantido contato com os demais durante toda a semana de preparação, o jogo não foi cancelado nem adiado. Apenas os três, assintomáticos, foram afastados. O problema é que, mesmo assintomáticos, os infectados transmitem o vírus. Às vésperas do primeiro jogo da final do Carioca, no último domingo, o atacante do Fluminense Wellington Silva também testou positivo. No jogo anterior, o lateral-direito do Flamengo do João Lucas já havia tido o diagnóstico positivo. As duas partidas foram mantidas sem constrangimento algum.

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Já a duras penas, o isolamento social sucumbiu diante da ausência de articulação entre a União, os Estados e Municípios, de pressões do setor econômico e, principalmente, por um insaciável desejo pela morte. A maioria das autoridades políticas nunca se interessou em rastrear o vírus e potenciais infectados em busca de isolá-los. Antes mesmo do início do contágio, a toalha estava jogada. Parece que, certos da inexorabilidade da morte, investiram em ampliar leitos de enfermagem e terapia intensiva. E, agora, dado o esgotamento do mal fadado isolamento social, a opção escolhida é pela imunidade de rebanho, já que uma boa parcela da população está contaminada a esta altura e não há problema em outra se contaminar. O futebol, como um dos setores econômicos mais rentáveis, foi o carro-chefe da “volta à normalidade”. Depois, as igrejas e shoppings. Agora, as praias. Cansado de esperar pelo coronavírus, o Brasil está indo ao seu encontro. A imunidade da minoria às custas da contaminação da maioria. Mas todos sabemos quem é a maioria e, quem, a minoria, no Brasil.

Ao que parece, o Campeonato Paulista e, posteriormente, o Mineiro servirão ao mesmo propósito, como o Catarinense e o Cearense já servem. Gostaria de apontar que o retorno do futebol no Brasil fora apenas um delírio coletivo, como uma festa estranha com gente esquisita. Porém, foi uma espécie de projeto piloto. Aparentemente o delírio coletivo mesmo foi a quarentena a qual nos submetemos nos últimos meses. Depois de um tratado mórbido, o futebol explicitou como o Brasil enfrenta a pior pandemia do último século: ignorando-a. Não há direito ao luto, nem respeito por quem lhe reivindica. Sem torcida e, até mesmo, sem transmissão, o futebol segue sem saber para aonde vai. Como o Brasil.

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