Minha casa em Portugal

Por Nara Vidal

28/06/2020 às 06h55 - Atualizada 27/06/2020 às 10h48

Meu filho tomava banho. Entrei no banheiro para bater um papo. Achei que fossemos falar de Star Wars, de escola, de skate. De repente, a revelação: mãe, acho que quando eu crescer, quero ser escritor. Diante de tamanha iluminação, meus olhos se abriram numa mescla de desespero e orgulho. Tive receio daquelas palavras. Tanto que minha expressão talvez tenha chegado como assombro ao encontrar o olhar do meu filho. Ele se calou e arregalou levemente os olhos azuis. Eu me calei e arregalei meus olhos. Arqueei as sobrancelhas e quis saber mais. Ele me via escrevendo, eu parecia feliz como se aquilo me bastasse e ele queria ser como eu.
Na hora de dormir, passei alguns bons minutos refletindo sobre a confissão do meu filho. Sim, uma confissão como se me dissesse um segredo. Tenho certeza de que ele não sairia por aí gritando aos quatro ventos que escrever era a profissão que desejava exercer. Daí, fiquei um pouco fora do eixo. A cama rodou brevemente. Foi preciso que eu segurasse minhas próprias mãos para eu não cair de mim. Uma sensação estranha, um pouco perturbadora. Pensei que não queria que meus filhos vivessem nesse estado constante de incômodo ou melancolia
Por que me alarmou a confissão dele? A primeira preocupação foi pensar se um dia ele terá dinheiro para viver bem. Virginia Woolf, do alto do seu privilégio, escreveu que um teto todo seu é um dos pré-requisitos para a criação livre. E se, escrevendo, ele não conseguir pagar um aluguel, um financiamento, comprar comidas saudáveis, viajar, comprar roupas, livros, ir ao teatro, ao show da banda preferida? Será que ele vai gostar disso tudo? Fiquei pensando nas minhas próprias dificuldades financeiras. São dificuldades muito diferentes das de várias pessoas que eu conheço. Talvez meu único sonho extravagante seja o de ter uma casa pequena, uns dois quartos num vilarejo em Portugal onde eu possa ter uma piscina porque faz calor demais e eu gosto de nadar, comprar e beber vinho local, ler livros, receber amigos, escrever, cuidar dos meus alimentos. Realmente não sonharia com mais que todo esse luxo. Mas sonhos também podem ser vulgares e deselegantes, e desejar em voz baixa comparado a ambições tão grandes pode ser desperdício aos olhos de alguns. Ou será que esse monte de tanto não passa de uma montanha de nada? Será que se contentaria em cuidar da própria horta e da própria cama aquele cuja ambição é trocar de carro todo ano, viajar para a Disney, Miami, visitar o Louvre para tirar uma foto com a Monalisa e se esquecer do L’Orangerie, por exemplo? Será que vive feliz quem precisa bater metas e ponto, rodar em volta da hora do rush como se fosse rato no esgoto? Será que viverá contente quem se endividar para portar um celular de modelo que eu nem acompanho mais só para mostrar que tem? Mas mostrar para quem? O que essa gente faz com tanta coisa? Será que privilégio mesmo não é saber que dinheiro nenhum no mundo substitui aquela sensação de nunca mais estar sozinha porque é seu o ato de escrever? Escrever é o mesmo que viver quatro estações num dia: você acorda se sentindo a dona do mundo porque escreve – esse verbo intransitivo. Vai dormir se achando uma perdedora porque não consegue pagar as contas com folga.
Jamais mentiria para o meu filho: trabalhar escrevendo é duro. Nem me refiro ao lapidar das frases, da seleção tantas vezes errada das palavras. Refiro-me a manter a dignidade de viver sem querer tanto. É difícil não querer demais. Não é fácil ter mil atividades e inventar outras cem para dar conta de arcar com uma vida simples: dar aulas, dar cursos, fazer traduções, escrever para blogs, escrever livros, escrever prefácios e orelhas, fazer leitura crítica, fazer leituras, participar de feiras. São essas as atividades que podem nos dar sustento. Ainda assim, meu filho precisa saber que sempre haverá quem acredite sermos capazes de viver de brisa e ser possível almoçar uma música, jantar um filme e morar num livro. Talvez os endinheirados tenham inveja de nós porque não conseguem decifrar o sorriso satisfeito de quem olha para a estante abarrotada de histórias e enxerga barras de ouro. Percebi que não será possível argumento contra a vontade do meu filho. Ele me disse assim que quando eu escrevo, estou feliz, pareço não querer fazer mais nada. E não há dívida ou banco que me tire esse bem.
Talvez tenha sido essa garantia sedutora de um tipo de vida eterna que tenha fisgado meu filho. É possível que tenha sido essa solidão tranquila que ele notou enquanto eu escrevia.
Essa função de ser escritor é mesmo difícil e é, de fato, dura. Aos olhos de tantos é pouco, mas é meu e é profundo. Nunca mais estarei sozinha na minha casa em Portugal.

Nara Vidal

Nara Vidal

Nara Vidal é escritora. Nascida em Guarani, Zona da Mata mineira, em 1974, há quase duas décadas vive em Londres. É autora de mais de uma dezena de títulos, a maioria deles publicados em português. Dentre eles, os infanto-juvenis "Dagoberto" (Rona Editora) e "Pindorama de Sucupira" (Penninha Edições), os de contos "Lugar comum" (Passavento) e "A loucura dos outros" (Reformatório), e o romance "Sorte" (Moinhos), premiado com o terceiro lugar no Oceanos de 2019.

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