Sobre a banalização do mal

“Habituados com a violência, a corrupção, a desigualdade, nós nos acostumamos a conviver com o mal”


Por Ricardo A. Ferreira, assessor teológico, filósofo e teólogo

21/06/2020 às 06h19

Um olhar atento sobre o atual momento certamente nos daria a chance de, sem nos deter em embates políticos, rever nossa compreensão de sociedade e de ser humano. Mas, ao nos depararmos com as situações vividas por muitas pessoas pelo mundo afora, qual sentimento brotaria com maior força dentro de nós?

Habituados com a violência, a corrupção, a desigualdade, nós nos acostumamos a conviver com o mal. Algo já denunciado, lá pelos anos de 1960, pela filósofa Hanna Arendt, que, sendo de origem judaica, sofreu os horrores do nazismo. Ela fala sobre uma banalidade do mal para explicar a ideia de que, muitas vezes, quem pratica esses atos é incapaz de reconhecer sua responsabilidade por entender que está apenas cumprindo ordens. Ou seja, há o risco de as pessoas comuns verem o mal como algo normal, realizado por um dever ou segmento ideológico fanático. Forma de desumanização que torna os atos mais violentos em um simples cumprimento de metas burocráticas. Assim, poderíamos citar, além do nazismo, outras tantas incongruências, como a prática piedosa dos generais chilenos que, dizendo-se católicos convictos, não viam problema algum entre estar na missa de manhã e praticar torturas pelo resto do dia, ou no próprio Brasil, onde a religião é continuamente utilizada como instrumento de manipulação da consciência.

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Numa sociedade que banaliza o mal, não há espaço para a memória. Perde-se a identidade, tudo se torna corriqueiro. Assim, vamos perdendo a capacidade de nos comover, tornando-nos burocratas, duros e insensíveis. E, dessa forma, nós nos tornamos incapazes de enxergar além dos fatos ou das táticas de convencimento que afrontam as ciências, a racionalidade e o compromisso ético. Isso explica a dificuldade em lidar com os efeitos reais como a pandemia que atravessamos, por exemplo. Quando tudo se reduz a estatísticas, fica difícil humanizar as coisas. Tudo pode parecer exagerado. Ainda mais quando, no meio disso, perde-se mais tempo com discussões políticas infrutíferas que com a busca de soluções para a crise instalada.

Vivemos uma situação-limite. Mais uma vez desafiados a tomar nosso lugar na história. Nesse sentido, temos a emergência do bem, que deve ser exercitado todos os dias, de maneira a estender-se como única corrente capaz de promover mudanças significativas. Não se pode aceitar a usurpação de valores éticos em nome de qualquer que seja a ideologia que se queira implantar. Porque mais forte que qualquer manifestação do mal é o despertar da consciência para o bem comum.

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