Fechadas, livrarias veem crise se aprofundar e apostam no on-line
Ora drama, ora tragédia, sempre mistério: Fechadas desde março, livrarias da cidade assistem à crise mundial no setor se aprofundar e mercado on-line se consolidar
Segundo livro mais vendido em maio no país, “Todo santo dia” é a estreia literária da coach Andreza Carício e foi publicado de maneira independente por uma pequena editora, especializada em projetos de coachs, que financia parte das tiragens. O livro, lançado no final de março, ocupou o sexto lugar em abril e chegou à segunda posição em maio, perdendo apenas para a onipresente auto-ajuda norte-americana “Mais esperto que o diabo”. Publicada pelo portal PublishNews, especializado no mercado editorial, a listagem é uma amostra da venda de livros no Brasil, reunindo os dados das principais redes e casas do país. Durante a pandemia, é também um retrato do consumo e da performance do setor. Enquanto o primeiro lugar em fevereiro comercializou 19.421 exemplares em fevereiro, antes da primeira notificação de Covid-19 no país, o livro de mesma posição em maio vendeu apenas 5.962 exemplares, uma diferença de 70%. O mercado mudou radicalmente, afirmam diferentes componentes dessa trama. E não é um processo despertado pela chegada do vírus.
“Nosso setor vem sendo esmagado há algum tempo. Para alguns ramos, a pandemia é caótica. Para o ramo livreiro, é um aprofundamento de uma crise que já existia. Já tínhamos dificuldade de conseguir material com as distribuidoras, as editoras já não rodavam grandes tiragens e demoravam a entregar”, aponta Angela Lopes, proprietária da Livraria Ca D’ori, que, como todas as outras na cidade, encontra-se fechada desde a terceira semana de março, completando três meses na próxima semana. “Essa crise econômica que vem assolando as empresas durante a pandemia vem a acrescentar àquela crise das livrarias que já víamos se arrastar há dois anos, das dificuldades dos dois maiores players do mercado”, acrescenta Paulo Roberto de Almeida, da Atena Bookstore, referindo-se às redes Saraiva e Cultura. “Houve um efeito cascata com essa crise provocada por elas, que respondem por 40% do mercado no Brasil”, aponta ele, defendendo que o modelo das megastores não cabe mais no Brasil, nem no mundo. “Em Nova York, por exemplo, a Barnes & Nobel está passando pelos mesmos problemas que a Saraiva e a Cultura no Brasil. Especialistas apontam, justamente, um retorno aos pequenos negócios. A livraria de bairro e de rua atua no mercado de nicho. A livraria não vai acabar.”
“Em Nova York, por exemplo, a Barnes & Nobel está passando pelos mesmos problemas que a Saraiva e a Cultura no Brasil. Especialistas apontam, justamente, um retorno aos pequenos negócios. A livraria de bairro e de rua atua no mercado de nicho. A livraria não vai acabar”, Paulo Roberto de Almeida, livreiro da Atena BookStore
“Vamos ter que nos ressignificar”, assegura Angela. E os dados de maio divulgados no Painel do Varejo de Livros no Brasil, publicado pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros (Snel) em parceria com a Nielsen, confirmam. No comparativo com maio de 2019, o setor sofreu, no último mês, uma queda de 33% no volume de vendas e no faturamento. No acumulado de 2020, o mercado livreiro já demonstra retração de 13%. Abril, contudo, foi o mês de maior declínio, com 45% a menos de livros vendidos no país. “Vamos ter que literalmente começar do zero, porque as pessoas que não tinham segurança com o on-line, que melhorou bastante, agora, irão ganhar a confiança no e-commerce”, ressalta Angela, ainda confiante na potência do contato presencial. “Não perderemos o hábito de ir a uma livraria, mas precisaremos ter uma nova roupagem, uma nova forma de nos aproximarmos dos clientes. Como vai ser? Ainda não dá para prever. O pós-pandemia é um renascer que ainda não sabemos como se dará, se teremos fôlego, se estaremos aptos a caminhar ou se vamos ficar pelo caminho. Até mesmo os que chegarem lá e reabrirem, que saúde terão seus negócios?”
On-line é solução imediata, mas não compensa físico
Com um site em criação, a Livraria Arco-Íris antecipou a finalização do projeto quando a pandemia fechou sua loja física. Lançou a plataforma com o intuito de automatizar e agilizar as compras, que hoje faz via site próprio, WhatsApp e Instagram, com entregas feitas por seu entregador ou por empresas de moto-entrega. “Pelas plataformas, o movimento aumentou, as pessoas querem, cada vez mais, procedimentos automatizados e rápidos. Nas redes sociais, o movimento não para, mas dá muita demanda de trabalho. O atendimento fica lento, dura o dia inteiro e, ao final, grande parte compra, mas é ‘travado’. Não é dinâmico como o varejo, em que o cliente entra, escolhe e leva”, pontua o proprietário Gabriel Dourado, que demitiu metade da equipe, suspendeu o contrato de 25% e, hoje, atua com o quarto restante. “O prejuízo é iminente, não tem como fugir dele e é enorme”, lamenta o empresário. “Perdemos as forças sem dinheiro em caixa e ficamos mais vulneráveis a outras adversidades. O mercado pede lançamentos, sucessos editoriais, o que é imprevisível. Se lançam muito menos, diminuem nossas chances de ter best-sellers, aqueles livros muito falados nas ruas e na imprensa. Acredito que o mercado como um todo irá sofrer muito”, projeta.
Com um site em processo de idealização, Angela Lopes, da Ca D’ori, investiu no atendimento via redes sociais. “Isso não representa nem 10% do que precisamos. É desesperadora a falta que faz ter a porta aberta. São três meses sem faturamento. É algo inédito”, observa. Segundo a experiência de Paulo Roberto de Almeida com sua Atena Bookstore, loja física e ambiente virtual não rivalizam, mas se complementam. Desde 2015, sua livraria atua na internet, com foco na plataforma Estante Virtual, de comércio de títulos usados. A loja física ele abriu há exato um ano, completado em maio. “Sempre idealizei a livraria não só como um local onde se vende livros, mas como um ponto de encontro, de discussão de ideias, de descobertas. A livraria tem um caráter simbólico da descoberta do prazer da leitura”, sugere o empresário, que investiu apenas na estrutura física, já que toda a operação existia e apenas migrou para o formato presencial. A loja, contudo, existiu por apenas dez meses, já que há três está fechada devido à pandemia. O único funcionário teve seu contrato suspenso. Neste momento, Paulo e a esposa atendem pedidos on-line, despachados via Correios ou por delivery na cidade. Enquanto a loja física amarga a queda no faturamento, a venda no marketplace “continuou normalmente, com o mesmo volume”.
“É desesperadora a falta que faz ter a porta aberta. São três meses sem faturamento. É algo inédito”, Angela Lopes, livreira da Ca D’ori
“A grande aposta das livrarias são as reinvenções pelos marketplaces e redes sociais”, pontua o proprietário da Atena, que tem uma das mais movimentadas contas do Instagram no setor local, e que responde por grande parcela das demandas por delivery. “Hoje em dia é vital, para qualquer empresa que queira sobreviver, ter seu acervo disponibilizado on-line, seja por marketplaces, seja pelas redes sociais. Vamos aprender muito com essa pandemia”, avalia o livreiro, citando a vasta oferta de materiais virtuais para capacitação e para melhoria no fornecimento de dados e produtos na web. O e-commerce, de livros e de outros itens, enfrenta, no entanto, a concorrência com gigantes como a Amazon e as deficiências que se aprofundaram durante o isolamento social na entrega país afora. “Muitos profissionais que trabalham com venda on-line estão passando por problemas com os Correios. Evidentemente, a crise, que afetou todo mundo, também os afetou. Já é sabido que a empresa dispensou alguns funcionários que tinham comorbidades e estavam no grupo de risco. Além disso, houve uma sobrecarga nas vendas on-line. Passamos pelo problema do prazo mais demorado para entrega e notificamos nossos clientes de que essa demora tem acontecido”, conta Paulo Roberto de Almeida.
‘O confinamento deu a dimensão de que é possível consumir menos’
Ainda que seja cedo para definições, o mercado livreiro indica um novo modelo a ser seguido nos próximos meses no qual prudência parece ser palavra a nortear. Grande parte das editoras brasileiras enxugaram suas agendas de lançamentos até o fim do ano, na expectativa de que a retração no setor, indicada até agora, prevaleça. Para Angela Lopes, proprietária da Livraria Ca D’ori, o que também se impõe como dúvida é o comportamento do consumidor após o período de isolamento social e o quanto ele será prejudicado pela crise econômica nacional. “O confinamento deu também às pessoas uma outra dimensão: é possível consumir menos, não é necessário gastar tanto para viver. Toda a população consumidora talvez gere um novo modelo”, sugere a livreira, que durante o período teve uma redução de metade do condomínio e conseguiu negociar desconto no aluguel da loja. Responsável por boa parte de seu público, as escolas configuram-se como outra preocupação, já que, enquanto estiverem fechadas, impactarão em suas vendas, mesmo que sua porta seja reaberta, o que deve acontecer quando Juiz de Fora acessar a terceira onda do programa Minas Consciente. Atualmente na onda verde, o programa ainda precisa avançar para a branca e, então, chegar à amarela. Considerando que cada revisão é feita num período de 21 dias, as livrarias só serão retomadas no segundo semestre.
“O confinamento deu também às pessoas uma outra dimensão: é possível consumir menos, não é necessário gastar tanto para viver. Toda a população consumidora talvez gere um novo modelo”, Angela Lopes, livreira da Ca D’ori
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“Não existe um pensamento único”, lamenta Angela acerca da desunião do setor em Juiz de Fora. De acordo com ela, o pensamento coletivo permitiria ações coordenadas e efetivas em defesa do mercado livreiro, já tão fragilizado. Ela cita, como exemplo das dificuldades que transcendem a pandemia e se aprofundam na atual crise, a dificuldade de o setor conseguir crédito e aderir a linhas de financiamento em bancos. Paulo Roberto de Almeida, da Atena, tem aposta otimista. “Vai haver uma tomada de consciência não só pela crise provocada pelo coronavírus, mas pela própria crise do mercado. As livrarias estão se reinventando bastante”, comenta, apontando para a urgência de novos comportamentos em toda a cadeia. A esperança, segundo ele, reside em iniciativas como a da editora Companhia das Letras, que anunciou na semana passada a criação de um fundo de R$ 400 mil para auxiliar pequenas e médias livrarias independentes no país. O montante destina-se exclusivamente ao pagamento de salários de funcionários, evitando mais demissões no setor. A proposta, com duração de três meses, foi divulgada acompanhada por uma mensagem de reconhecimento da importância dessas pequenas e médias casas no setor. “Temos, assim, uma aposta na revitalização do mercado pelos pequenos, porque são eles que promovem a bibliodiversidade”, indica o livreiro.
Saraiva amarga mais prejuízo, mas loja em JF se mantém
No mercado físico e no on-line, a rede Saraiva sofreu um novo revés com a pandemia. A receita líquida da empresa, que em abril de 2019 foi de R$ 54,5 milhões, só alcançou R$ 7,3 milhões no mesmo mês deste ano. A queda foi de 86,6%, segundo o relatório mensal de atividades divulgado pelo escritório que faz a administração judicial da marca. De acordo com o documento, as lojas físicas, em sua maioria ainda fechadas, registraram uma receita bruta de pouco mais de R$ 50 mil, contribuindo para um prejuízo de R$ 18 milhões. Mesmo o e-commerce apresentou retração de mais de 60% no comparativo com o ano anterior.
Em maio, a Saraiva fechou sete de suas lojas, uma delas em Minas Gerais, no Diamond Mall, na capital. A empresa informou, ainda, a negociação com outras 12 unidades, duas delas em São Paulo e outras quatro no Rio de Janeiro. Juiz de Fora não consta nas listas da empresa que no último mês realizou 295 demissões. Procurada pela Tribuna, a Saraiva não retornou o contato. De acordo com informações da assessoria de imprensa do Independência Shopping, onde está localizada a única loja da empresa na região, até o momento a livraria segue aguardando sua reabertura.