Marteladas


Por Júlia Pessôa

24/05/2020 às 07h00

A obra do vizinho martela, em plena pandemia, a certeza do egoísmo e da irresponsabilidade das pessoas. A cada golpe na parede do apartamento ao lado, que impede a concentração em qualquer outra coisa, ouço outra série de marretadas em ritmo contínuo, com batidas cada vez mais fortes. Era 14 de março de 2018 e todo mundo com um mínimo de humanidade se estarrecia com a execução de Marielle Franco e Anderson Gomes.

Naquela noite, tomei um café com meu amigo Evandro, na sala de professores que era ponto de encontro e de afetos antes que cada colega seguisse para mais um turno de aulas. Talvez tenha sido o pior café que tomei na vida, com o sabor intragável das palavras do meu querido Evandro, das quais eu nunca me esqueci: “Toda virada para um período histórico muito pior começa com uma morte emblemática. E essas duas de hoje marcam isso.”

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Enquanto escrevo, a picareta provavelmente quebra tijolos na casa, e a frase do Evandro também não me dá sossego, porque nunca martelaram tão alto, e realmente o horror veio em escalada – ou seria derrocada? Não que as coisas estivessem toleráveis em março de 2018. Muitíssimo pelo contrário.

Mas a velocidade com que as coisas foram se desgraçando certamente quebraria uma nova barreira da física. Já seria ruim o suficiente estarmos vivendo uma pandemia que mata diariamente mais de mil pessoas, número que vai ter subido até que estas palavras sejam publicadas. Seria, como é, um revés sem tamanho ver um Estado que não apenas lava as mãos (trocadilho intencional) diante dessa chacina sanitária, mas toma ativamente medidas que agravam o fosso em que afundamos a cada segundo que passa. Seriam infortúnio mais que o bastante, noves fora o vírus, todos os escândalos políticos que têm vindo à tona, mas há também descaramento de terraplanistas trajados de verde e amarelo que contaminam o ar empunhando bandeiras com máscaras penduradas no pescoço.

As marretadas seguem. “Pá, pá, pá, pá…” na parede vizinha. “Momento histórico muito pior”, na voz do Evandro em minha cabeça. Nesta semana, a política pública de extermínio da juventude negra e pobre levou João Pedro, João Vitor e Rodrigo. Jovens para quem o “fique em casa” nunca foi garantia de segurança, na pandemia ou na vida. Ainda na semana que se passou, um repórter cinematográfico foi brutalmente agredido, aqui ao lado, em Barbacena, por um dos abomináveis cidadãos de bem, pelo simples fato de estar exercendo jornalismo.

Novas palavras fazem coro com as de meu amigo, e me lembro daquele texto do autor alemão, numa paráfrase assustadora e documental do Brasil de hoje. “Primeiro eles levaram a juventude negra, mas eu não me importei porque não era da juventude negra. Depois, levaram os jornalistas, mas não me importei porque era jornalista”. Para o supracitado cidadão de bem, é fácil não se importar. Mas neste país que adoece e morre aos milhares todos os dias, a água vem batendo no traseiro de quem faz escudo de cloroquina cada vez mais rápido – e de quem não faz também, infelizmente. As marteladas seguem, no vizinho e no triste dia a dia da brasilidade, agravadas pela sensação tão palpável de que nossas queixas têm morrido ao vento. “A mais triste nação, na época mais podre”, preconizou o disco, cirurgicamente. O Brasil é um enorme e inóspito condomínio sem síndico.

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