Canal analógico


Por Renan Ribeiro

15/05/2020 às 07h15

Muitas vezes coadjuvantes no todo da casa, as janelas tomaram o protagonismo para si. Se antes, elas eram muito lembradas em tempos de mudança de temperatura, de pernilongos, de chuvas, ou quando um ambiente precisava ser arejado, agora elas se tornam um indispensável canal de contato com o mundo lá fora.

As telas virtuais, que cumprem a sua função de entreter, informar, educar e aproximar, têm estado sobrecarregadas. Muitos ‘eventos ao vivo’, muita pressão por produtividade, mas o acolhimento nem sempre chega como as pessoas precisam. Em alguns casos, seu uso esgota e frustra os usuários, que acabam largando seus celulares em qualquer canto. Nós nos debruçamos sobre o parapeito da janela em busca de outros universos e, se tudo der certo, podemos encontrar situações muito interessantes.

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Acompanhando o movimento pela janela, por exemplo, consegui ter uma noção de como a percepção das coisas tem caminhado. Nada científico, mas mesmo assim é curioso. Em um primeiro momento, vi o movimento da rua diminuir consideravelmente. O fluxo de carros intenso deu uma trégua importante. Nos primeiros fins de semana, quase não se ouvia o barulho dos veículos. Mas não ficou assim por muito tempo.

Depois vieram as máscaras. Víamos que as pessoas começavam a se habituar com o seu uso. Umas se mostravam pouco a vontade e com dificuldades. Outras, tiravam de letra. Os passeios dos muitos cães também ficaram mais curtos. Agora, a sensação é de que o movimento passa a voltar ao que era antes. Sair da janela, nesses casos, é uma alternativa para diminuir a ansiedade.

A estrutura de metal pintado com placas de vidro ondulado que emoldura o cotidiano lá fora se tornou parte da rotina. Ela limita os raios de sol que aquecem as pernas pela manhã. Por meio dela, acompanhamos encantados a formação dos degradês irretocáveis do céu do fim de tarde. As janelas também permitem acompanhar a trajetória da lua, em todas as suas fases e formatos.

Vemos por meio delas a vida acontecer no jardim da vizinha. Não tinha ideia da quantidade de borboletas e beija-flores que se revezam entre as plantas das quais ela cuida com esmero. Testemunhei bem-te-vis quase se tornarem meus vizinhos. Pelas janelas conversamos sobre as coisas da vida com amigos e conhecidos que passam pelo passeio. Vi os funcionários dos Correios chegarem com algumas poucas encomendas e com as contas.

As janelas se tornaram boas telas, sobre as quais podemos imaginar e pintar como vai ser a vida depois que tudo isso passar. Por enquanto, vejo a adaptação das pessoas às novidades e espero que elas sejam passageiras. Eu vejo o cenário mudar. Chuva, cerração e até mesmo a transição entre estações. Ainda não escolhi um preferido, admiro muito a todos. Ganhamos de presente, todos os dias, várias pinturas novas.

Nunca há repetição. O céu se renova. O movimento muda, mas não para. Há dias mais quietos sim, mas nunca vazios. Não há espaço para tédio. Há sempre algum novo lance para perceber, porque das janelas, há sempre vida em movimento para ver.

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