Um homem de luta, por escrito e assinado


Por Gabriel Ferreira Borges

21/04/2020 às 07h14

Ninguém entendeu quando o comunista João Saldanha aceitou o convite de João Havelange para assumir a Seleção Brasileira em fevereiro de 1969. Tampouco Saldanha compreendeu por que fora convidado. Em coluna publicada n'”O Globo” em 24 de março de 1970, Saldanha, franco como era, assumiu, quando já demitido. “Isto eu jamais entendi e no dia em que fui convidado para dirigir a Seleção Brasileira perguntei à minha mulher Teresa e ela também não soube responder. Quando eu disse: ‘topo’, eu sabia que estava topando lutar por todas as coisas que vinha pregando há dez anos na imprensa e no rádio. Mas pensei ingenuamente: bem, eles mudaram de ideia ou concepções.” Cerca de dois meses após a promulgação do Ato Institucional nº 5, a Seleção Brasileira seria treinada por um comunista de guerrilha. Por um membro do Partidão.

Quando cronista do “Última Hora”, Saldanha fora um crítico ferrenho da campanha da Seleção de Vicente Feola na Copa do Mundo de 1966. Não se sabia, portanto, se o convite da Confederação Brasileira de Desportos a Saldanha era para miná-lo enquanto crítico ou vigiá-lo enquanto opositor do regime ditatorial. “Quando fui convidado para assumir a Seleção, tinha plena consciência de que, se a Ditadura fechasse ainda mais o cerco, eu poderia espirrar a qualquer momento, afinal de contas, nunca escondi o que penso e os homens que me escolheram sabiam perfeitamente quem eu era. Quando entrou o Médici, senti nitidamente que as coisas iriam ficar mais difíceis. Este homem foi sem dúvida alguma o maior ditador da história do Brasil”, disse Saldanha, em meio ao processo de redemocratização, em 1985, ao Núcleo Esporte e Cidadania. Como ele se autoproclamava, era um homem de luta, por escrito e assinado.

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Já como técnico da Seleção Brasileira, Saldanha viu o amigo Carlos Marighella ser assassinado. Entregou a autoridades internacionais um dossiê que registrava os presos políticos e os opositores torturados e assassinados pelo regime. Peitou Emílio Garrastazu Médici quando lhe foi pedida a convocação de Dadá Maravilha. Tão logo foi destituído – ou dissolvido, como escrito à época. Saldanha deu lugar a Mário Jorge Lobo Zagallo após garantir a classificação da Seleção para a Copa do Mundo de 1970 com campanha impecável nas Eliminatórias Sul-Americanas. A Seleção Brasileira era vista por Médici como um instrumento de propaganda da Ditadura Militar.

Qual seria o custo político de uma equipe campeã sob o comando de um comunista? As imagens do amigo de Marighella ao levantar a Taça Jules Rimet durante o desembarque em solo brasileiro seriam eternizadas. Saldanha foi simbolicamente anistiado, diga-se; como seriam, mais tarde, os militares responsáveis por torturas e assassinatos. Ao menos desde a década de 1910, a Seleção Brasileira e os seus símbolos são instrumentalizados como projeto de um país autoritário, conservador e higienista. Desde a equipe de Epitácio Pessoa limitada a jogadores brancos à campeã da Copa América de 2019, cuja camisa foi capturada não pela anticorrupção, mas pelo nacionalismo e pela necropolítica. O que diria Saldanha aos ignorantes nas ruas? Não haveria meias palavras.

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