Uma utopia, por favor: Tribuna lança espaço para textos sobre futuro possível
Tribuna inicia seção “Como será o amanhã?” convidando escritores, artistas, pensadores e leitores a projetarem um futuro melhor que os dias de isolamento
Leia primeiro texto, assinado pelo escritor Ulisses Belleigoli
As ruas ficaram vazias. Um vírus terrível, alastra-se pelo mundo. Incontrolável e incontornável, tem como única medida contrária o isolamento. Assim, as pessoas passam a se esconder em suas casas. Lojas, escolas, restaurantes e repartições cerram as portas. Poucas indústrias permanecem, funcionando com escalas de trabalho. Muitas empresas pedem falência, e o número de desempregados se multiplica. A fome cresce e os corpos se empilham. Os rostos se cobrem com máscaras, e os abraços são proibidos. A realidade superou a ficção. E a experiência provocada pelos tempos de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, em muito assemelha-se com uma distopia, termo criado pelo pensador John Stuar Mill em 1868, mas já desenvolvida muitas décadas antes.
Para os dias duros, que insistem em produzir “amanhãs” tão mais terríveis que os “hojes” _ com números de casos confirmados e mortes que aumentam hora a hora _, a Tribuna inicia a seção “Como será o amanhã?”, na qual estimula a projeção de dias melhores, isto é, utopias para dias distópicos. Ocupado por escritores, artistas, pensadores e leitores, o espaço se abre a textos de diferentes estilos e linguagens, da crônica ao ensaio, passando pelo conto e pela poesia, para refletir sobre o momento e despertar a esperança. Estreando, o psicanalista e escritor Ulisses Belleigoli escreve um conto tão surpreendente quanto tocante, no qual faz do agora um passado distante. Já passou, parece dizer o texto acalentador.
O alerta pela destruição
Fundamental no imaginário coletivo do século XX, as narrativas distópicas tomaram a literatura, com obras como “A máquina do tempo”, de H. G. Wells, de 1895; “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley, de 1932; e “1984”, de George Orwell, de 1949. Também ganharam o cinema, com “Laranja mecânica” como seu grande expoente. O filme de Stanley Kubrick, em 1972, foi baseado no livro homônimo de Anthony Burgess, publicado dez anos antes. Ainda, o termo desdobrou-se para a TV, espraiando-se no século XXI, com séries como “Black mirror” e “O conto da Aia”, esta última uma leitura da obra de 1985 de Margaret Atwood.
Tratado como uma utopia negativa, a palavra distopia, etimologicamente, significa “lugar doente”. Antagonista de “1984”, O’Brien define o poder nessa sociedade distópica: “É estraçalhar a mente humana e depois juntar outra vez os pedaços, dando-lhes a forma que você quiser. E então? Está começando a ver que tipo de mundo estamos criando? Exatamente o oposto das tolas utopias hedonistas imaginadas pelos velhos reformadores. Um mundo de medo e traição e tormento, um mundo em que um pisoteia o outro, um mundo que se torna mais e não menos cruel à medida que evolui. O progresso, no nosso mundo, será o progresso da dor. As velhas civilizações diziam basear-se no amor ou na justiça. A nossa se baseia no ódio. No nosso mundo as únicas emoções serão o medo, a ira, o triunfo e a autocomiseração. Tudo o mais será destruído – tudo.”
A ruína, base das distopias, servem como alertas. É a reflexão pelas vias do extremo de um futuro possível. Enquanto o cineasta argentino Fernando Birri pintou a utopia como um horizonte capaz de estimular a caminhada constante, sempre em frente, a distopia parece se encaminhar em perspectiva semelhante, mas apontando para um lugar onde não se deve chegar nunca. A caminhada, portanto, é sempre para trás, para que aquele futuro não se faça presente. Em contato com previsões catastróficas, portanto, cabe retomar as utopias para seguir adiante, como o próprio Papa Francisco, em sua mensagem de Páscoa, conclamou: “É um ‘contágio’ diferente, que se transmite de coração a coração, porque todo o coração humano aguarda esta Boa Nova. É o contágio da esperança.”
A força pelo sonho
Qual a sua utopia?, pergunta a Tribuna em seu convite à escrita de dias melhores. Para o sociólogo francês Michel Maffesoli, uma utopia possível diante da revolução provocada pelo coronavírus é a extinção do individualismo. “A volta do compartilhamento, da troca, do voluntarismo… Podemos encontrar várias palavras, digamos assim, espirituais. Mas ocorre que é esse sentimento que está dominando, no lugar do economicismo, do materialismo e do progressismo. Para mim, há uma volta de algo cultural e espiritual. Uma espécie de ideal comunitário, que está tomando cada vez mais força na contemporaneidade”, disse o pensador em recente entrevista para O Globo.
Segundo a economista carioca e professora da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos, Monica De Bolle, é provável que os nacionalismos deem lugar a uma cooperação mais ampla entre os países. Para a pesquisadora, em entrevista ao podcast Mamilos, a utopia projetada para o cenário global indica que, sem a solidariedade entre os países, torna-se praticamente impossível que a economia se reerga. O mesmo vírus que faz cada um fechar-se em sua privacidade instiga futuras mãos dadas. Ainda que da janela só vejamos a tempestade, os planos, possíveis ou não, distantes ou não, são de bonança. Ao menos é nesse porto que devemos nos ancorar.