Como artistas podem ajudar JF a se reerguer socialmente
A cura passa pela cultura: 60 projetos aprovados pela Lei Murilo Mendes devem contribuir para retomar a cena
O mundo adoeceu. De religiosos a economistas, muitos são os que identificam o coronavírus como esse vetor de um adoecimento que ultrapassa a questão física e contamina toda a sociedade. Utilizando-se dessa metáfora, o diretor geral da Funalfa, Zezinho Mancini, aposta na cultura como um dos principais elementos do processo de cura. “A pandemia é um fato inédito para esta geração. Estamos olhando para o horizonte sem enxergar o que vem por aí. Mas a história nos lembra que momentos como esse ficaram marcados por revoluções culturais. As limitações impostas pelo contexto costumam servir de trampolim para os agentes da indústria criativa da cultura. Se há um meio de reconstruirmos o que somos enquanto sociedade, esse meio, com certeza, passa pelo trabalho dos artistas”, sugere o gestor, justificando, assim, a manutenção do edital da Lei Murilo Mendes, que no último sábado divulgou seus 60 contemplados para a edição histórica que distribuirá R$ 1,5 milhão em recursos.
“A manutenção do Edital é decorrente, em primeiro lugar, do compromisso assumido pela gestão com a cidade. Depois de dois anos sem edital, foi necessário investir grande esforço para garantir sua realização. A equipe da Funalfa, técnicos da Prefeitura e, obviamente, artistas e produtores mereciam ter acesso ao resultado desse processo de avaliação, independente do coronavírus e de suas consequências”, pontua Mancini. “O momento presente é, sim, muito difícil para a cultura, mas não difícil a ponto de impedir que déssemos sequência ao Programa Cultural Murilo Mendes. A gente tem entendimento comum de que, nesse momento, a cultura deve ser ainda mais valorizada. Isolamento físico é diferente de isolamento social. Socialmente, é a cultura que nos une.”
Para a violonista Bia Nascimento, que ao lado do vibrafonista João Cordeiro forma o Duo Nascente, a aprovação o projeto de gravação do primeiro álbum do duo é fôlego para dias de ar rarefeito. “Tenho tentado manter a rotina de estudos, recordar músicas, dando aulas e fazendo reuniões on-line durante esse tempo. Mas foram desmarcados pelo menos quatro shows durante essas duas últimas semanas, alguns adiados, diminuindo minha renda pela metade”, conta ela, cuja proposta prevê dez músicas compostas por autores de Juiz de Fora, com participação das musicistas Amanda Martins e da Nara Pinheiro e direção musical de Caetano Brasil. Bia também assinará canções. “Vou aproveitar esse isolamento para isso”, diz ela, que espera gravar o disco no respeitado estúdio Versão Acústica, em São João Nepomuceno.
O planejamento, que previa o início dos trabalhos para março, no entanto, deve ser revisto. “Como produtora dos projetos, eu pretendo me articular com os artistas envolvidos para reavaliarmos o nosso cronograma de atividades. Confiando na efetivação dos contratos e realização dos projetos, acredito que já poderemos iniciar atividades de pré-produção durante o isolamento social”, destaca a produtora cultural Eliza Granadeiro, que atuará no projeto do Duo Nascente e também em dois outros: o primeiro disco solo do pianista Guilherme Veroneze, com uma autoral suíte para piano dividida em cinco faixas e edição de e-book com partituras, e a exposição fotográfica “O nome delas”, da artista Ana Cláudia Ferreira, reunindo oito ensaios com mulheres. “Acredito muito na potência de cada projeto: estamos falando de três trabalhos autorais, sendo dois projetos de música instrumental e um de artes visuais. Interessante observar que as gravações (do EP e do CD) serão as primeiras gravações próprias dos artistas e isso por si só já demonstra um fôlego de trabalho novo trazendo novidades artísticas para a cena. O trabalho de fotografia da Ana é muito sensível e propõe um olhar afetuoso e real para a imagem da mulher de carne e osso na sociedade, fora de padrões estéticos”, avalia.
Repasse aguarda definições
De acordo com o diretor geral da Funalfa Zezinho Mancini, o atual quadro de crise impacta o edital local. “Em função do avanço da Covid-19, que tem imposto um quadro de restrições e incertezas sob diversos aspectos, a Secretaria de Fazenda não consegue, imediatamente, estabelecer o calendário de dispêndio. O plano original do município, quando anunciado o investimento de R$ 1,5 milhão, era abastecer o Fundo Municipal de Cultura (Fumic) com recurso proveniente do Governo Estadual, que se comprometeu a quitar dívidas contraídas junto a diversas cidades em 2017 e 2018. As parcelas estavam sendo repassadas corretamente, mas indefinições surgiram em decorrência do vírus. Será preciso aguardar um pouco mais para compreender os impactos da pandemia em escala local e estadual para determinar esse cronograma. A Funalfa irá manter contato diretamente com os proponentes responsáveis pelos projetos contemplados para orientá-los sobre como proceder a partir de então”, assegura o gestor.
Inicialmente previsto para acontecer entre os dias 27 de outubro e 1º de novembro, a edição deste ano do Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora e Mercocidades é uma das três contempladas na modalidade incentivo a festivais e deverá receber R$ 100 mil. Segundo Marília Xavier Lima, coordenadora do evento e proponente do projeto, a verba garante uma base para realizar o festival. “Para realizá-lo nos moldes das edições anteriores precisamos de um pouco mais de recursos. No entanto, podemos com a Lei garantir a realização da edição desse ano, mesmo que em um formato menor”, afirma, acenando para a importância dos recursos no momento de retomada da cena após a retração provocada pela disseminação do coronavírus. “Quando o disco sair vai ser um respiro e uma explosão pós-isolamento”, acredita Bia Nascimento, uma das nove contempladas na área de música, num ano de resultado equilibrado entre as linguagens, estratégia seguida pela Comissão Municipal de Incentivo à Cultura (Comic), na última etapa de avaliação.
“A história nos lembra que momentos como esse ficaram marcados por revoluções culturais. Se há um meio de reconstruirmos o que somos enquanto sociedade, esse meio, com certeza, passa pelo trabalho dos artistas”
Zezinho Mancini, diretor geral da Funalfa
‘A cena se reinventou sem a lei’
Ainda que reconheça a relevância da Lei Murilo Mendes neste atual cenário de crise provocada pela pandemia, o diretor e dramaturgo Hussan Fadel resgata as duas edições passadas que foram canceladas e avalia um impacto da descontinuação. “Bons projetos foram aprovados, muita coisa boa vem por aí, mas acho que a cena artística da cidade se reinventou sem a lei, sem o Poder Público”, diz. “Estamos falando de muita gente talentosa, que seguiu trabalhando de maneira independente e que, devido à procura recorde pelos recursos da Lei Murilo Mendes, ‘superlotação’ esta decorrente dos anos em que a Lei não aconteceu, não foram contemplados pelo edital, pelo recurso do município”, acrescenta ele, contemplado com o projeto “EspaçoNave: Uma odisseia poética”, cujo processo contará com o auxílio do prestigiado diretor Amir Haddad, do Tá na Rua, e da bailarina romena radicada no Brasil Dorothy Lener, precursora do Butô no país, além de consultoria da produtora Cynthia Maragareth.
“Podemos nos imobilizar ou nos alimentar de tudo isso. Escolhemos nos alimentar e seguir em frente”
Hussan Fadel, diretor e dramaturgoO conteúdo continua após o anúncio
“Acho que a retomada da ‘vida cultural’ de Juiz de Fora está na mão de todas e todos esses artistas, não só os que foram ‘aprovados’, pois a arte pulsa, independente do que seja. Quando tudo isso acabar, estaremos todos ávidos por encontros, pela vida, por poesia. Acredito que teremos arte em profusão, vinda de todos os caminhos, de todos os casulos que serão rompidos com o fim da quarentena”, discute Hussan, ponderando, ainda, sobre a importância de investimento em cultura neste e em todos os outros momentos. Afinal, a cultura também cura. E os artistas, reconhece o diretor e dramaturgo, possuem demandas urgentes, como todos os cidadãos. “Esperávamos, com toda a efervescência artística de Juiz de Fora, que o município tomasse medidas que assegurassem o mínimo a todos os profissionais do setor, assim como outras cidades do país tem feito. Isso tem a ver com o reconhecimento da cultura como segmento que movimenta a economia e de seus trabalhadores e trabalhadoras como profissionais que fazem de Juiz de Fora um relevante polo da produção artística e cultural do estado e do país”, indica ele, às voltas com um isolamento que silencia a sede de sua companhia Corpo Coletivo, O Andar de Baixo, mas não paralisa sua expressão. Em tempos de lives, ele e seus companheiros de arte perseguem outros espaços, outras linguagens, outras presenças. “Podemos nos imobilizar ou nos alimentar de tudo isso. Escolhemos nos alimentar e seguir em frente.”