Quando esses dias acabarem


Por Wendell Guiducci

07/04/2020 às 07h00

Há viagens, mesmo ruins, que não se quer terminar.

Ou porque o destino é ainda mais indesejado.

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Ou porque o destino é o próprio caminho.

Ou ainda porque seu corpo já foi apossado pela poltrona que lhe rouba as formas e você simplesmente não quer mais sair dali. Não quer mais sair do abraço de um insuspeito útero de couro sintético e poliéster, isolado e protegido do mundo exterior. A curva de suas costas, os ângulos de seus braços: a metamórfica cadeira molda tudo. Você está adaptado.

Também nós, na inércia, nos acostumamos a esses dias singulares e que breve chegarão ao fim. E – veja, insular leitor! – será doloroso descer deste ônibus, dar adeus ao carinho de nossa contraparte, o corpo ainda vibrando na mesma frequência do tremer suave de um motor que silencia.

Não nos lembraremos do medo da miséria nem do medo da morte.

Nos primeiros passos, algo irresolutos, o que nos fará falta serão as horas em casa. O café desapressado. Os filmes antigos. As aventuras no fogão. O silêncio dos parques. A cerveja fora de hora. O dia estendido, a noite longuíssima. As avenidas engarrafadas de vento.

Quando esse ônibus chegar ao ponto final e formos obrigados enfim a descer, estaremos de novo apartados do convívio com nós mesmos. Nós, que agora temos a oportunidade de olhar para dentro, isolados, volta e meia buscando algo pela janela onde nada se movimenta, num esforço inútil, estaremos outra vez nas ruas, vigilantes, assaltados pela fúria dos dias. Seremos novamente do mundo, ainda que não saibamos agora que mundo será esse.

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E nesse novo velho mundo, abandonados com as malas à nossa própria sorte em qualquer calçada da Terra, descobriremos se aprendemos algo sobre nós mesmos. Se estamos prontos para o que virá. Ou se preferiríamos voltar ao aconchego desses dias paradoxais de angústia e paz.

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