Falando “sôzinho”


Por Renan Ribeiro

27/03/2020 às 07h00

Tenho o costume de falar sôzinho. Desse jeito mesmo. Mas sôzinho, não tinha me dado conta disso. Foram as risadas dos meus amigos, quando eu pronunciava o vocábulo, que soaram como alerta. O jeito de dizer, herdei da minha mãe. Mas acredito que isso não faça parte de um sotaque, é algo infinitamente menor, perto dos uais, eitas e arredas que são verdadeiros patrimônios linguísticos mineiros. Tanto que foram outros conterrâneos que percebem a diferença. Uma vez me repreenderam. :”Não se fala sôzinho. Se fala só-zi-nho, que deriva de só.” Fiquei desolado na hora, mas mantive a cara de quem não se importa. Não deixei de falar sôzinho, tem coisas as quais eu não consigo aderir. Na verdade, em um primeiro momento, até forcei a mudança, mas não funcionou muito bem. O sô sai naturalmente, quando vi, já tava eu falando sôzinho de novo.

Vez ou outra essa definição me volta à mente. Porque sózinho é muito triste. No dicionário vem muito mal acompanhado de palavras como abandono, absolutamente só e isso é horrível. Sôzinho é quase um sou-zinho. Pensa: sendo um, então, não tem esse negócio de absolutamente só nada, se você tem a si mesmo. Conversava com uma grande amiga sobre isso. Ela vivia o hiato em um relacionamento amoroso. Antes, passava boa parte dos seus fins de semana com seu consorte. No entanto, vinha da primeira vez em que passou sôzinha. Quando percebeu, tinha passado o dia em silêncio. Perguntei se tinha sido ruim. Ela respondeu que não e, para a surpresa dela, tinha sido até bom.

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Tenho apreciado muito a minha própria companhia. Me levo para tomar café, vejo filmes comigo mesmo, e nos momentos raros de ócio, contemplo a paisagem que estiver na minha frente sem pressa. Agora, às vezes, sinto falta de estar sôzinho e me obrigo a inventar algo para fazer que apenas envolva o prazer de estar na minha própria presença. Tanto que descobri mais. Também falo sôzinho, em voz alta. O que já chegou a incomodar quem convive comigo mais de perto, que pensava que eu me dirigia a uma outra pessoa, quando, na verdade, o interlocutor era eu mesmo.

Isso vem de muito tempo, desde que me entendo como gente falante. Quem vê, principalmente na rua, pensa que falta um parafuso. Mas não tem nada mais confortável do que pedir a própria opinião sobre algo. Restringir esses diálogos à mente não tem o mesmo gosto. Porém, exige cuidado, porque numa dessas, se fala demais. E se alguém escuta, já era!

Há também quem leve ao extremo a ideia de estar sôzinho. Conheci Christopher McCandless pelas palavras de Jon Krakauer, em “Na natureza selvagem”. Ele passou muito tempo tendo a si mesmo como único companheiro em sua ambiciosa jornada. O que o levou à morte, inclusive. Sua irmã, Carine, disse em um trecho da narrativa que ele era ensimesmado. Não era, no entanto, antissocial. Tinha muitos amigos e todos gostavam muito dele. McCandless, de acordo com a irmã, conseguia ficar muitas horas sozinho sem se sentir solitário. Ele sabia lidar com o sentimento de solidão, o que pode ser muito difícil para muita gente. Mas não é a essa necessidade de estar sôzinho a qual me refiro. Esse isolamento profundo adotado pelo jovem vai muito além da ideia de desfrutar da própria presença.

Se permitir estar sôzinho por alguns momentos, ou horas, em um mundo totalmente conectado, que em tese, seria capaz de tornar as distâncias mais curtas, tende a causar desconforto. Afinal, basta abrir qualquer rede social e estamos diante de muita gente, temos tanta informação sobre a vida dos outros, que podemos chegar a sentir que participamos ativamente delas. Mas se a internet cai, voltamos a nos encarar no reflexo da tela. É melhor então, que tenhamos uma relação cordial com o rosto que encaramos.

A rede possibilita, por exemplo, que se possa expandir essa relação. Minha caixa de entrada está lotada de coisas que eu vi e gostaria de rever. Encaminho para mim mesmo artigos que desejo ler na íntegra, sugestões de músicas que eu pretendo ouvir, dicas de filmes, séries e outras muitas coisas.

Recorrentemente, é a minha foto, ao lado do meu nome, que encabeça a listagem de conversas. A coisa vai tão longe, que outro dia me ensinaram um truque. Você cria um grupo com algumas pessoas no Whatsapp, depois, as retira de lá e fica sôzinho, podendo encaminhar mensagens a si mesmo. Dá para escrever o que vem à cabeça, fazer lembretes, deixar impressões para anotar em um diário, ou em algo semelhante. Ainda não experimentei, mas acho válido.

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McCandles depois do auto exílio, vivendo na e da natureza, tinha planos de voltar para perto das pessoas. Mas não deu tempo. Embora ele tenha aprendido muito enquanto esteve sôzinho, o contato fez falta. Não podemos perder de vista as relações, que são fundamentais. Nenhum homem é uma ilha, como disse o poeta. Mas é interessante encaixar entre todos os contatos que temos, um tempo para descobrir e se acostumar com a própria companhia.

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