Adoráveis Mulheres do século XXI: uma família formada por três gerações

Quatro mulheres e três gerações: como vive, no século XXI, uma família formada por mulheres, assim como no livro “Mulherzinhas”, sucesso editorial de 1868, que se mantém atual como sua transposição para o cinema, que teve seis indicações e venceu em uma categoria do Oscar desse ano


Por Mauro Morais

08/03/2020 às 07h00

Terminam juntos. Sem casamento, sem noivado, sem rótulos. A protagonista de “Adoráveis mulheres”, interpretada pela atriz Saoirse Ronan, termina o filme com o professor vivido por Louis Garrel, mas não há um matrimônio como no livro no qual se baseou o longa-metragem que recebeu seis indicações ao Oscar deste ano e faturou o prêmio de melhor figurino. No livro “Mulherzinhas”, de Louisa May Alcott, publicado pela primeira vez em 1868, a aliança no dedo ao final era uma exigência editorial. O filme conta isso. “Eu quis dar um final que Louisa teria gostado. No fundo, contei uma história de amor entre uma garota e seu livro”, comentou a diretora do longa, Greta Gerwig, responsável por renovar o interesse pela obra do século XIX. Mais de um século depois de seu lançamento, o título retorna às prateleiras em diferentes edições de distintos selos. Na trama, que se passa na Nova Inglaterra, as irmãs Meg, Jo, Beth e Amy enfrentam, ao lado da mãe Marmee March, os desafios de uma vida, pouco confortável e cheia de caminhos traçados que elas precisam subverter.

As quatro irmãs no filme “Adoráveis mulheres”, Oscar de melhor figurino. (Foto: Divulgação)

O interesse que a obra ainda desperta se deve, segundo a poetisa e roqueira Patti Smith, em prefácio da edição da Companhia das Letras, ao fato de o livro ser um “guia fundamental para a evolução da consciência e o valor da conscientização. Uma crônica sobre quatro meninas inesquecíveis, cada uma oferecendo algo próprio. E Jo March, assim como sua criadora, engloba o sacrifício, bem como a responsabilidade que temos com nós mesmos, com nossa arte. Louisa May Alcott conferiu às irmãs March vida, graça e uma esperança e uma determinação contumazes, dando, assim, o mesmo às mulherzinhas de sua época e das épocas por vir.” E quem são as adoráveis mulheres de nossos dias? Como nas narrativas de Gerwig e Alcott, são muitas e estão por todos os cantos, neste Dia Internacional da Mulher e em todos os outros. São Elenas, são Monicas, são Marinas e são Camillas.

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Tantas travessias

O bisavô foi o primeiro da família a conhecer o Brasil. Era comerciante e fundou a popular Casa Montesano, em Muriaé, onde chegaram seus descendentes. Silvia “Elena” Montesano Schettino – seu segundo e mais conhecido nome, que não foi registrado em território brasileiro – desembarcou no Brasil aos 15 anos. Era 1950, cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, conflito que a menina assistiu da janela de casa, vendo aviões cruzarem o céu e ouvindo as bombas que, milagrosamente, estouravam no mar. Morava no pequeno lugarejo de Brefaro, na província de Potenza, ao Sul da Itália. A apenas 3km dali, em Massa, na mesma província, vivia Emílio, que só veio a conhecer no Brasil. Sua irmã casou-se com o irmão dele. Elena, com ele. Viveram em Leopoldina, onde o marido mantinha uma mercearia. “Eu o ajudava”, conta ela, ainda mantendo um forte sotaque aos 84 anos. A educação na Itália era mais livre, recorda-se, assim como a vida no Brasil. Já mãe de três filhos, Elena não se restringia às tarefas do lar e também ajudava o marido na mercearia da família.

Elena com a filha Mônica, mãe de Camilla e Marina: mulheres se fortalecem no apoio de uma a outra. (Foto: Fernando Priamo)

Monica Montesano Schettino Oliveira, filha de Elena, também se dividia entre a casa e o trabalho com o marido, uma loja de plantas e paisagismo em Leopoldina. Economista por formação, ela cuidava da administração do negócio. Em maio passado, Paulo faleceu e consigo levou a visão artística do empreendimento. Em meio ao luto e à insegurança em como dar continuidade à loja, a mulher recebeu um telefonema da Câmara Municipal de Juiz de Fora informando que sua nomeação no concurso que havia prestado para o cargo de assistente legislativo já estava marcada. Viúva há apenas cinco dias, Monica enfrentou mais uma mudança e partiu para a cidade onde já moravam suas filhas, Marina e Camilla. Deixou para trás o apartamento no sétimo andar do prédio onde também morava a mãe, Elena, no sexto andar. Meses depois, a senhora mudou-se para acompanhar a filha e as netas. São delas os móveis da sala de jantar, a mesa e o buffet de madeira maciça que herdou de seus antepassados.

“Foi uma loucura, mas, ao mesmo tempo, foi válido, porque precisei fazer tudo muito rápido. Acabei com a empresa lá muito rápido, assumi aqui, fiquei na casa dos meus irmãos, que já moravam em Juiz de Fora, e logo na primeira semana achei bom. Trabalhar é bom e ocupa minha cabeça”, conta Monica, que há 35 anos convivia com Paulo, com quem foi casada por 25 anos. “Não o esqueci, mas tive um norte para a vida”, diz, à frente do piano que trouxe na bagagem. “Quando vim fazer faculdade de economia aqui em Juiz de Fora, mais nova, conheci o André Pires (maestro), assisti algumas aulas dele, fiz musicalização e fiquei encantada. Comecei a estudar piano, procurei uma tia dele, que me deu aulas e me passou para ser aluna dele. Participei de concurso e foi fantástico”, narra ela, que chegou a lecionar no Conservatório Estadual de Música Lia Salgado, em Leopoldina. O talento acredita ser legado da família italiana paterna, largamente musical e festiva.

Tantas lutas

Desde muito pequena, Monica aprendeu a se levantar após uma queda. Aos 2 anos, foi diagnosticada com atrofia no nervo óptico. Os desafios, a partir dali, seriam rotina. “A única coisa que não consigo fazer é dirigir. O resto, faço tudo”, diz a mulher de 53 anos, que por isso optou morar perto do novo trabalho. Viver no Centro, inclusive, é o que permite toda a autonomia de dona Elena, que vai e volta sozinha do pilates e da fisioterapia. “Admiro demais a minha mãe como mulher. Com todo o problema que tem na vista, ela conquistou muita coisa. Sou muito orgulhosa de tudo o que ela é e se tornou. Depois do falecimento do meu pai, ela foi o braço direito de todas nós e aguentou a barra. Todas nós nos apoiamos”, afirma a filha mais velha de Monica, Marina, estudante de direito de 23 anos, como a definir o termo sororidade.

Segundo Monica, a educação que recebeu foi a métrica que utilizou para a educação das filhas. “Minha mãe e meu pai sempre conversaram muito comigo. Saí de casa para estudar em outra cidade na juventude. Não precisei bater o pé. Meu pai e minha mãe tinham a cabeça aberta. E cada vez mais a gente tenta ficar mais aberto. Tento passar para elas a importância de termos uma relação aberta, para que possamos ser amigas. Sempre tento transmitir para elas o quanto é bom correr atrás dos sonhos, lutar pelo que queremos e se instruir, porque o conhecimento é o mais importante na vida. Meu pai me falava que o estudo ninguém me tiraria. Ensino isso para elas”, comenta Monica. Em 2016, ela ajudou a filha mais nova, Camilla, a arrumar a mala para viver em Juiz de Fora, onde cursaria o Ensino Médio. “Vim sozinha, e em 2017 minha irmã se mudou para cá”, diz a jovem, na época com apenas 16 anos. “Meus pais sempre conversaram muito comigo, diziam que eu deveria estudar muito. Eles nunca nos privaram de fazer alguma coisa, e sempre fomos sinceras com eles”, ressalta ela, hoje com 20 anos. A liberdade para sair, no entanto, foi crescendo de geração em geração. Monica percebe ser maior para as filhas do que foi para ela na adolescência.

Capas de algumas das edições brasileiras da obra “Mulherzinhas”

Tanta força

O mundo evoluiu em favor das mulheres, reconhecem as Montesano Schettino. Porém, ainda está longe do ideal. “Ainda vejo muito preconceito hoje. Na minha área, o direito, para uma mulher crescer e se desenvolver é mais difícil. Aos poucos desconstruímos mais o machismo. Como a nossa geração cresceu ouvindo a voz do feminismo e outras pautas da nossa sociedade, tem a mente mais aberta. E isso nos permite ensinar aos nossos pais. Eu e minha irmã, às vezes, explicamos para a minha mãe o que não se deve mais falar. Na época dela, muito coisa era normal e hoje não é mais”, observa Marina. Estudante de engenharia elétrica na UFJF, Camilla vive em um ambiente ainda predominantemente masculino. “É uma luta diária para provarmos que a mulher é a mesma coisa que o homem. Tive professores extremamente machistas na faculdade, mas temos professoras que lutam muito contra isso, como a Zélia (Ludwig), do Departamento de Física, que admiro muito. Ela luta pelos direitos das mulheres e das mulheres negras. Temos esse apoio nesse ambiente. Com os meninos que convivo, não sinto diferença”, destaca a jovem. “A geração dos seus amigos é outra, está mais aberta”, acrescenta Monica.

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Como na casa das March, do livro “Mulherzinhas” e do filme “Adoráveis mulheres”, para Elena, Monica, Marina e Camilla, a união em casa é o prenúncio da união nas ruas. É a força motriz para as conquistas ainda não alcançadas. Ao longo da semana, as quatro se reúnem durante as noites. Aos fins de semana, assistem a filmes ou saem. Sempre juntas. Aos domingos, as quatro comem massas. É sagrado. E é o momento de uma partilha que ultrapassa a mesa, o pão, a conversa. “Tenho essa força, porque minha mãe também é forte. E a gente aprende isso para a luta. A vida é um grande aprendizado, e pegamos força de todos os lados. A gente ensina e também aprende”, aponta Monica, referindo-se à inspiração na matriarca. Passadas cinco décadas de um casamento que a permitiu diferentes viagens pelo mundo, o que o marido adorava fazer, Elena se tornou viúva em 2011. Quatro anos depois, foi diagnosticada com um agressivo câncer de mama. Precisou fazer quimioterapia e radioterapia, perdendo todo o cabelo. Muito religiosa, se reergueu. E ao ver os fios crescendo, decidiu não mais pintar os cabelos. Nos fios acinzentados, estão o orgulho de uma adorável mulher.

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