Ingratos leitores


Por Wendell Guiducci

03/12/2019 às 07h10- Atualizada 03/12/2019 às 07h12

Tenho em minha estante alguns livros. Vários deles autografados, com dedicatórias. Ou porque foram recebidos como presente, ou porque estive ao lançamento. Tenho autógrafos e dedicatórias de Fernando Fiorese, Geraldo Muanis, Fernando Bonassi, Renato Dias, André Monteiro, Francisa Vilas Boas, Anderson Pires, Luiz Ruffato, Júlia Pessôa. De David Lloyd em uma HQ.

E tenho outros autografados e dedicados não a mim, mas a misteriosos desconhecidos. Ingratos desconhecidos. São livros usados, comprados em sebos, esses espaços mágicos, físicos ou virtuais, onde de um tudo se encontra. São livros, portanto, que foram dispensados, largados, atirados ao alcance de qualquer um que lhes imolasse uns trocados.

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Xico Sá e Ronaldo Bressane dedicaram sua participação na coletânea “Os cem menores contos brasileiros do século” a Bel.

Leonardo Brasiliense, seu “Adeus conto fadas” a Nelly.

Elias José, “A mal-amada” a Maria Rosa.

Ivana Arruda Leite dedicou “Ao homem que não me quis” ao Astier, que aparentemente não o quis (o livro) mesmo.

De Marcelino Freire, possuo dois que não deveria possuir: “Contos negreiros”, dedicado a André, e “Angu de sangue”, a Lucas. André e Lucas. Nomes bíblicos que poderiam ser trocados por Judas.

Pois não é uma traição ao autor enviar um livro autografado a um mercador qualquer de letras? Ora, se iriam mandar o volume para as estantes impessoais dos sebos, que esses vendilhões de histórias alheias poupassem o respectivo escritor de gastar sua “munheca”, como especifica Xico Sá em sua dedicatória à insidiosa Bel, horas e horas rabiscando nomes e palavras carinhosas, esforçando-se para não repetir as reverências, quando poderia estar jogando sua prosa fora de outra forma, tomando uns bons drinques com os comensais da festa.

Dedicatória de escritor, inconfidente leitor, não é mero paratexto. É literatura feita à mão, ali na hora, instantânea, exclusivamente para aquele que in loco se apresenta como cúmplice.

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É o recorte de um momento. O instante único, compartilhado entre duas pessoas, encapsulado para a eternidade nuns rabiscos eventualmente alcoolizados, sim, mas dignos de preservação, de tombamento como patrimônio pessoal e absolutamente intransferível.

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