Equipe juiz-forana conta como fez o filme sobre Rogéria
História de uma bandeira: Com equipe formada por seis juiz-foranos, incluindo o diretor Pedro Gui, docudrama “Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto” estreia nos cinemas do país na próxima quinta (31) e garante exibição em salas locais
Não havia o debate acerca das identidades de gênero, sequer pesquisas sobre o tema. Não havia a “História da sexualidade”, do filósofo Michel Foucault, obra que só viria a ser publicada em 1976. Não havia a ideia de desconstrução de gênero, porque não havia a filósofa norte-americana Judith Butler, cuja atuação só se dá na década de 1980. Havia preconceito, por todos os cantos, por todas as casas. E havia Astolfo Barroso Pinto, que em 1964, ano em que se iniciou a ditadura militar no Brasil, venceu um concurso de fantasias de carnaval tentando emplacar o nome Rogério, ao que o público respondeu em efusivos gritos: “Rogéria! Rogéria! Rogéria!”. Considerada, por ela mesma, como a “travestia da família brasileira”, Rogéria debateu identidade de gênero, discutiu a sexualidade e descontruiu as fronteiras de gênero fazendo arte, a sua arte. “A Rogéria falava que não precisava levantar a bandeira, ela era a bandeira. Quando começaram todas essas discussões, ela já tinha lutado muito, já tinha militado muito. E optou por não bater de frente. Ela, de outra forma, lutava, dentro de uma novela, na casa das pessoas, com o carisma que tinha”, defende o cineasta juiz-forano Pedro Gui, diretor de “Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto”, longa-metragem que estreia nas salas do país na próxima quinta-feira (31), incluindo salas do Cinemais local no Alameda e Jardim Norte.
“A Rogéria nasce no momento de mais opressão que vivemos nos últimos anos no Brasil. Além de ser uma pessoa extremamente corajosa, ela foi de uma empatia muito forte. Como ela se aceitava, fazia com que as pessoas também a aceitassem. Ela foi, de forma muito amorosa, quebrando tantos preconceitos. Ela foi uma pioneira na liberdade LGBTQI+. Ela lutou por uma abertura de consciência, para que as pessoas entendessem que não existem diferenças. Ela respeitou muito e foi muito respeitada. Claro que sofreu opressão, apanhou e sofreu, mas a força dela de se manter num ideal fez com que as coisas começassem a mudar”, avalia Pedro, citando a personagem Ninete, em “Tieta”, que fez com que Rogéria, em 1989, entrasse nas casas de milhões de brasileiros interpretando uma secretária que, em certa altura da trama, revelou-se homem, chocando Santana do Agreste. “A Rogéria foi a mais completa das artistas. Ela era poliglota, fazia teatro, fazia cinema, TV. Era uma grande artista. Ela foi dirigida pela Bibi Ferreira, ganhou prêmio com o Nelson Caruso e o Grande Otelo. Ela foi uma das estrelas do Carlos Machado, o maior musical da época. Como a Betty Faria fala, a Rogéria colocou a travesti no lugar de artista e de respeito. O destaque dela veio pela competência artística que tinha”, acrescenta o diretor sobre a artista morta aos 74 anos, em 2017.
A vizinha que todos queriam ouvir
Pedro Gui conheceu Rogéria em meados de 2013. “Morávamos no mesmo bairro, no Leme. Ela sempre parava com a gente e trocava ideia. Começamos a ter afinidade e desde o primeiro momento eu falei que queria fazer um documentário dela”, recorda-se ele, radicado no Rio de Janeiro desde 2010. “Ela é extremamente apaixonante. A cada vez que a gente conseguia conversar com ela dava mais vontade de fazer o filme”, conta o diretor de produção e produtor executivo do longa André Garcia, também juiz-forano e que, na época, dividia apartamento com Pedro. Em 2016, a dupla mobilizou uma equipe para gravar a primeira entrevista com a vizinha ilustre. Meses depois Rogéria foi embora. “O filme é um documentário ficcional muito por isso. Seria um filme totalmente diferente com ela viva. Seria um certo road movie, com ela passeando pelos lugares onde brilhou. Com o falecimento dela, optamos por colocar uma parte ficcional e fazer outras entrevistas, com pessoas como Jô Soares, Betty Faria, Aguinaldo Silva, Aderbal (Freire Filho), gente que fez parte da vida dela artisticamente e também da vida do Astolfo, como os irmãos e as artistas quer começaram com ela, como as Divinas Divas Brigitte de Búzios e Jane Di Castro. Quem fala no filme também é a Nany People, que, para mim, é a referência hoje do que era a Rogéria, no sentido de ser uma artista completa, que faz cinema, teatro, televisão”, observa o cineasta.
“A gente tinha um relacionamento pessoal com ela. Foi muito triste. Ela morreu muito rápido, ficou uns dias no hospital, voltou para a casa, depois adoeceu de novo e morreu no hospital. A princípio nem pensei no projeto, mas em como ajudar para que ela tivesse uma boa passagem”, lembra André, rapidamente procurado por emissoras de televisão para que vendesse o material inédito que haviam coletado. “Foi um momento turbulento para mim”, diz o produtor, que contou com recursos próprios da equipe e não acessou leis de incentivo, nem patrocinadores, para a produção. “Não porque achasse que não tinha força, mas pela urgência que tínhamos”, pontua André, cuja produtora comandada em parceria com Pedro Gui, a Roda Filmes, associou-se com a Brisa Filmes, de Fernanda Thuram, gerando uma terceira produtora, a BR Produções. Para a distribuição, o filme conta com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual e com a parceria com a Pagu Pictures, responsável por distribuir o argentino “O anjo”, o francês “Um banho de vida” e o premiado brasileiro “Gabriel e a Montanha”. Exibido no Festival do Rio em 2018, no Mix Brasil e também em Munique, na Alemanha, “Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto” ganhou o troféu de melhor direção no Los Angeles Brazilian Film Festival, e melhor direção, filme e atuação no Digo – Festival Internacional da Diversidade Sexual e de Gênero de Goiás.
O palco é a cabeça
As mais de duas horas daquela que possivelmente foi a última entrevista de Rogéria serviram de norte para o trabalho de montagem do longa que reúne cenas de arquivo de jornais, revistas, fitas caseiras e televisão, de dramatizações e as memórias da personagem-título. “O que nos guiou foi essa conversa. Parecia um monólogo no qual ela contava histórias, ria e chorava. A partir daí, fomos atrás de pessoas que contribuíram nas diversas fases da trajetória dela”, explica o montador Yuri Westermann, outro juiz-forano na equipe formada por seis profissionais locais. Além de Yuri, André e Pedro, também integram a ficha técnica do filme os juiz-foranos Fernanda Mansur, que trabalhou na direção de arte das passagens ficcionais, e os irmãos Bernardo e Fred Toscano, responsáveis pela finalização da obra. “Nos conhecemos em Juiz de Fora e somos amigos desde a infância”, conta o diretor de 33 anos, cuja família ainda vive em Juiz de Fora, onde deu seus primeiros passos na carreira. “Fiz um filme na cidade, o ‘Nóia’, fiz teatro no Grupo Divulgação, participei do Teatro da Academia, e hoje acabei de fazer uma produção aí, o longa-metragem ‘Cabrito’, com direção do Luciano Azevedo.”
Primeiro longa da BR Produções, “Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto” contou com a confiança de artistas renomados nacionalmente, que aceitaram falar sobre a travesti cujos últimos papeis na TV foi interpretando a si mesma, no humorístico “Tá no ar na TV”. “O fato de a Rogéria ter iniciado o projeto com a gente ajudou muito para que as pessoas nos recebessem”, comenta André Garcia, que esteve frente a frente com nomes como Jô Soares e Bibi Ferreira. Gravadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, as entrevistas tomaram 18 dias não consecutivos da produção. “Já a parte da ficção foi um pouco mais elaborada. Precisei de uma equipe enorme. Tivemos mais de cem pessoas envolvidas. Foram cinco diárias filmadas no Rio de Janeiro e na Ilha de Paquetá. A Rogéria nasceu na cidade de Cantagalo, no Rio, e precisávamos de uma cidade que tivesse o clima interiorano dos anos 1950. A ilha seria ideal. Fora essa parte, todo o resto foi filmado no Teatro Bradesco. Queríamos uma narrativa como se a cabeça dela fosse aquele palco”, aponta o produtor executivo, referindo-se a sequências como a que Astolfo, ainda criança, diz à mãe que se sente diferente, e outra, igualmente emocionante, na qual Rogéria sofre um acidente que lhe deixa grandes cicatrizes no rosto.
Um mesmo corpo para Astolfo e Rogéria
“Ela queria que o filme se chamasse ‘O Rogéria'”, revela o montador Yuri Westermann. “Essa questão para ela era muito curiosa, difícil explicar, algo muito dela”, acrescenta. O artigo masculino seguido do nome feminino, no entanto, soou estranho demais, e outra solução foi encontrada. “Rogéria não era trans. O Astolfo não se transformou em Rogéria, que era uma travesti. Ela era não-binária. Ela não tinha só o lado Astolfo ou só o lado Rogéria. Ela tinha os dois lados. Colocar só o nome Rogéria no título não seria justo com a pessoa que ela era”, defende Pedro Gui, que na amizade da produção acessou as duas personagens com o mesmo corpo. “O Astolfo, de certo modo, era o protetor da Rogéria, o agente, a pessoa que estava por trás. Quando o Astolfo cria o personagem Rogéria para dar voz ao seu lado feminino, torna-se seu grande arquiteto”, avalia o diretor, para logo completar: “Ela é muito importante. Acho que ela é uma das heroínas do país. Ela foi a precursora, lutou pelo pela liberdade de expressão, liberdade de gênero e liberdade de ser.”
Yuri Westermann recorda-se de uma mulher que não apenas dominava o palco, a telinha e a telona, mas a própria expressão. Sabia usar a voz, ampliando-a ou reduzindo-a. Sabia fazer as pausas no momento exato. “Ela começava a falar e todo mundo ouvia”, lembra o montador, recordando, também, outra cena: “No Leme era andava na rua normalmente. só as unhas que a preocupavam.” Para o produtor André Garcia, o alcance que o filme já tem apresentado, antes mesmo de entrar em circuito, se deve à garra da equipe e, também, “a um dedinho da Rogéria. Lá de cima ela olhou por nós durante todo o processo. Ela tinha a admiração de muitas pessoas, não só nas artes, mas de políticos, professores, de toda gente. Em todo lugar que vou e falo o nome dela, todo mundo tem uma admiração muito grande”. Segundo Yuri, ao longo do processo sempre houve a preocupação de tê-la como espectadora satisfeita. “O Pedro fez um filme para ela”, assegura. “Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto” também é um agradecimento a uma pessoa que soube o que era gratidão. “A Rogéria era muito agradecida”, afirma o diretor Pedro Gui, contando do interesse da entrevistada em exaltar suas vitórias em detrimento dos fracassos. “A gente pode batalhar através do amor: talvez essa tenha sido a maior lição que ela me deu e que o filme traz.”