Sem perdão


Por Renan Ribeiro

21/09/2019 às 07h00

Eu não desculpo quem colocou esse tom de cinza no céu. Uso o verbo colocar, porque esse tom não é o natural. Se o cinzento fosse produzido pela natureza, o prenúncio de que o céu se derramaria em forma de chuva sobre a terra seca, eu não ficaria tão contrariado. Mas nesse caso, falta consideração em tantos níveis diferentes, que não tem como diminuir o feito. Era para estar tudo azul, céu aberto ao sol de quase-primavera, condizente com as altas temperaturas com as quais já estamos lidando. Porém, está tudo abaixo de um véu cinza, que parece não querer sair de cena. O ar pesa dentro e fora de nós. Intoxica os ambientes e as mentes, contaminando tudo. Impede que vejamos o sol, ou o que está por perto com clareza, em seus piores dias.

Abri a porta do dia. A fumaça ainda ocupava todos os espaços, dando ao ar um cheiro forte, agressivo e desagradável. Colocando na boca um amargor. Pelas escadas de casa, a fuligem do que quer que tenham queimado estava toda espalhada. Não bastasse o ar, os pedaços queimados de material também destacavam a presença anterior do fogo indesejado. Contei pelo menos quatro pessoas com mangueiras jorrando filetes de água, na tentativa pouco fértil de limpar a sujeira, durante uma caminhada breve. Trabalho e gasto de água dobrado, porque os pedaços queimados, quando estão molhados, se agarram ao chão e dificultam a limpeza. Desperdício e tristeza.

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Foto: Felipe Couri

Tempo depois, fiquei sabendo que as pessoas que têm problemas respiratórios no entorno tiveram crises. Além da secura própria do tempo de estiagem, a poluição e agora, as queimadas, as coisas ficaram piores para elas e para todo mundo. E o que mais dói, no entanto, é ter certeza de que uma pessoa voluntariamente ateou fogo em algum terreno, sem pensar em nenhum momento em todas as consequências. Consequências que, inclusive, podem e vão se virar contra ela.

Além de todos os problemas é preciso destacar que a nuvem de fumaça que se coloca sobre nós turva a nossa visão. Sua densidade nos deixa confusos e perdidos. Impede que vejamos as situações com clareza. Torna o dia mais cinzento por outra ótica, porque também acaba com o bom humor e com a nossa disposição. O espírito incendiário que provoca esse tipo de acontecimento não consegue medir o efeito do que produz. Até agora, não consegui citar nenhum aspecto positivo. O impulso incendiário que guia esses cidadãos os impede de calcular danos, que podem ser maiores, dependendo de onde os sujeitos se metem a intervir.

O período chuvoso pode não dar conta de tanta falta de consideração. É muito provável que ele não seja suficiente para conseguir lavar as más intenções, ou toda essa falta de empatia. As nuvens escuras podem mudar de motivo, mas elas podem não ser tão numerosas quanto os focos de incêndio espalhados pela cidade, pelo estado e pelo país. É exatamente isso o que me preocupa. Porque vai chegar o momento em que elas não darão conta do recado. Se isso acontecer, não haverá arrependimento que dê conta de ajeitar o que restar. O prejuízo que muita gente, assim como eu, já sente, vai ser vivido também por quem o causou. E não vai ter o que fazer. Até quem costuma enxergar o copo meio cheio pode perceber. O cheiro de queimado permanecerá intoxicando a todos se ninguém tomar atitude agora.

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