Avó coragem: Oscarina é eternizada em livro pelo neto
Em romance de estreia, escritor retrata trajetória de ousadia da avó, que em plena década de 1940 resolveu separar-se após três meses de casada e grávida
Tem gente que, de tão gigante, não cabe num retrato. Tem afetos que, de tão intensos, resistem ao tempo, ainda que tenham sido vividos aos 4 anos. Lindemberg Nunes Reis era menino, tinha apenas 4 anos quando a avó Oscarina partiu. Ainda assim, sente o cheiro, a voz e a presença da mulher como se fosse ontem. “Ela está viva”, assegura o homem que, aos 36 anos, escreveu o romance “Oscarina – Depois da intensa neblina, o nascer do sol” (Quártica Editora), narrando a trajetória de luta e coragem que retrato nenhum dá conta de detalhar. E ao falar de sua aldeia, Lindemberg fala do mundo. Em seu livro de estreia, com lançamento neste sábado (14), às 18h, no Café Flux, o escritor aborda a realidade no interior mineiro, a condição da mulher na primeira metade do século XX e os costumes e práticas desse período no país.
“Vovó Oscarina morava conosco no bairro Benfica. E, por incrível que pareça, tenho lembranças muito latentes dela. Em minha memória, a tenho como uma pessoa tangível e especial. Próxima, fraterna, amorosa. Uma mulher lutadora, que teve uma vida muito dura por escolhas pessoais que na época não eram compreendidas. Para se ter uma ideia, ela se casou com meu avô e decidiu se separar em apenas três meses. Ainda por cima, estava grávida. Dá para imaginar o aperto que essa mulher passou? Optar por ser mãe solteira no interior de Minas Gerais? Pior, sendo ela filha de fazendeiros de renome na região? Ela nunca revelou o motivo de sua separação para ninguém, e foi julgada frequentemente por isso. Não me traz estranheza que ela tenha tentado o suicídio com sua única filha no ventre. Mas Deus interveio, e ela pôde me dar a chance de, entre outras coisas, escrever sobre a vida dela”, emociona-se Lindemberg.
Essencialmente humana, Oscarina é apresentada em sua docilidade e também em seu pragmatismo, tanto que nas páginas iniciais é revelada em dureza quando a filha conta-lhe sobre a morte do pai. Separada há muitas décadas do homem, Oscarina se compadece, apoia a jovem e, em seguida, põe-se a arear as panelas. Para o autor, era uma “verdadeira guerreira”. “Ela comprou a briga de ser mãe solteira para uma vida inteira. Hoje em dia, sou pai e sei da importância do cônjuge na estrutura familiar. Não é fácil imaginar-me, por exemplo, cuidando sozinho de meu filho. Para fazê-lo, eu teria que me desdobrar. Virar dois. E hoje em dia temos acesso a informações, transportes, saúde e bens de consumo, a infraestrutura é enorme. Agora, imagina esta decisão naquela época! Era tudo diferente. A vida era mais dura. Da roça para a cidade era um trajeto de horas no lombo do cavalo. Embora a vida tenha sido rígida com ela, o destino mostrou que vovó soube criar minha mãe. Mas fácil não foi, muito pelo contrário. Foi uma superação. Talvez tenha sido esta a maior virtude da vida de minha avó.”
Valentia feminina
Oscarina foi a única avó com quem Lindemberg de fato conviveu, ainda que por pouco tempo. Os avós paternos faleceram muito antes de ele nascer. Seu pai era o nono filho de uma família de dez irmãos. Já o avô materno, Joaquim, não rendeu-lhe grandes lembranças por ser separado da avó e só ver a filha e o neto em encontros anuais. “Aos 57 anos de idade, Oscarina deixou essa vida para habitar em outro plano. Por coincidência do destino, veio a falecer exatos três meses depois de Joaquim, que morrera em 26 de abril de 1987. Aliás, exatos três meses foi o tempo que Oscarina ficou junto à Joaquim, como casal, entre 26 de fevereiro e 26 de maio de 1949”, escreve o escritor e neto num dos capítulos finais da obra que reverencia não apenas a memória familiar, mas, sobretudo, a valentia feminina.
Resultado de intensa pesquisa, o livro recorre ao depoimento de familiares e amigos que conviveram com Oscarina e, ainda, a documentos e experiências do autor, que opta pela forma romanceada também num gesto de universalização da narrativa. “Grande parte do livro foi construída com base em lembranças de diversas fases da vida de minha avó. Primos, tios e outros parentes, já idosos, também foram imprescindíveis para relatar-me detalhes da época. Não me restringi a contatos telefônicos ou e-mails. Para entender um pouco melhor a infância e a adolescência de minha avó (no final da década de 1930 até o início da década de 1950), estive nos escombros da casa onde ela viveu. Embora a casa não exista mais, foi importante para eu entender como pode ter sido o convívio de tantos filhos em uma casa tão pequena. Vovó teve mais de 20 irmãos, contando os filhos de criação. Também estive em igrejas da região procurando sua certidão de casamento. Não foi um trabalho trivial de pesquisa. Além disso, tive que estudar muito sobre o cenário macroeconômico e social da época, estilos de vida e aspectos de infraestrutura urbana e rural”, conta ele, engenheiro por formação e ofício diário.
“Nós engenheiros temos que ser pragmáticos. E não é nossa praia a escrita. Mas também temos de convir que a literatura é uma parte deliciosa do nosso dia a dia. Leio muitos livros, independentemente de gêneros: romance, biografias, história, contos etc”, pontua Lindemberg, que da prática retira o fôlego para, no epílogo, projetar o que sempre foi silêncio. Como todos os capítulos, o trecho final também carrega no título o nome da fazenda onde a ação retratada se passou, a cidade e a data em dia, mês e ano. Nos últimos escritos, o autor esmiúça e especula os motivos que levaram Oscarina à separação. Tensa, porém fluída, a sequência que se passa na casa de Oscarina e Joaquim carrega detalhes que só mesmo o romance conseguiria preservar, de tão significante. “Entrei tão a fundo na história que não sei mais dizer se isso aconteceu ou se foi fruto de minha fértil imaginação.”
OSCARINA – DEPOIS DA INTENSA NEBLINA, O NASCER DO SOL
Lançamento neste sábado (14), às 18h, no Café Flux (Galeria Pio X segundo piso, 127 – Centro)