Alma azul


Por Wendell Guiducci

20/08/2019 às 07h15

Tadeu vendeu sua alma.

Era uma alma bonita, azul, solar.

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Mas foi um período difícil, as contas foram se amontoando, boletos chegando, cheque especial, juros de cartão de crédito, e Tadeu vendeu sua alma.

À época pareceu uma boa ideia: vendo agora, uso o dinheiro para colocar as coisas nos eixos e depois vou atrás e compro de novo.

Funcionou. Com os recursos da venda de sua alma, Tadeu organizou as finanças, investiu em seu negócio, prosperou e, enquanto prosperava, sempre pensava “onde anda minha alma”, “preciso dar um jeito de encontrar a minha alma e comprá-la de volta”, mas andava ocupado demais prosperando e nunca encontrava tempo.

Com os filhos criados e os negócios estabilizados, vivendo em uma bela cobertura no Bairro Bom Pastor, Tadeu decidiu enfim resgatar sua alma, aquela alma azul, solar, que jamais esquecera.

Tentou encontrar o comprador, mas a transação ocorrera há muito tempo, antes da internet, dos bots, dos hackers e do big data. Então botou anúncio classificado em jornal, em seus perfis pessoais e profissionais nas redes sociais, na OLX, fez lambe-lambe e espalhou panfletos no Calçadão da Rua Halfeld durante quatro sábados.

“Procuro alma azul, solar, ano 1966. Pago bem.”

De tudo tentaram empurrar em Tadeu. Almas mais largas, mais profundas, de cores e idades variadas, mas ele não estava interessado em nenhuma que não fosse a sua, aquela alma azul, solar. Até falsificações grosseiras lhe foram oferecidas, como uma alma 1966 pintada de azul, uma fraude aviltante que Tadeu desmascarou com um simples arranhão a unha, revelando por baixo da camada cerúlea a pintura original bege e morrediça.

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Foram meses de procura e agora ele desistiu. Ficará assim, sem alma. Um oco de dar eco.

Segue em frente, mas não esquece: de vez em quando, enquanto trafega de casa para o trabalho, da janela do carro cisma que viu sua alma tocando violão num banco da Praça Jarbas de Lery.

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