RT Mallone lança primeiro álbum oficial, ‘Roho Tahir’

Sucessor da elogiada mixtape ‘Vendedor de sonhos’, trabalho com sete músicas mostra a visão do rapper sobre o cotidiano em que vive no Bairro São Benedito, Juiz de Fora


Por Júlio Black

13/08/2019 às 07h00- Atualizada 13/08/2019 às 07h01

Animado com a repercussão do que chama de ‘trabalho de apresentação’, RT Mallone lança álbum em que solta o verbo em relação a vários temas cotidianos (Foto: Fernando Priamo)

Manter a pureza de espírito é difícil, diríamos impossível, por conta da falibilidade que acompanha o ser humano desde o nascimento. Mas Victor Alexandre Pereira, que assumiu para o seu alter ego rapper a alcunha RT Mallone, tenta fazer o seu melhor. É o que se pode conferir em “Roho Tahir” (“Alma pura”, tradução de duas palavras de dialetos africanos), primeiro álbum oficial do artista, lançado na última sexta-feira (9) em várias plataformas digitais pela gravadora paulista Artefato.

Em sete músicas, o trabalho mostra a visão de RT Mallone sobre o cotidiano em que vive no bairro São Benedito, o desafio de ser um rapper negro numa sociedade marcada pelo preconceito, a violência da qual escapa “por cinco minutos”, a condição do negro no Brasil, o consumismo como forma de autoafirmação e o orgulho da cor da sua pele, entre outros temas. Tudo embalado por uma produção em que trabalhou com antigos e novos nomes e sacramentou inéditas parecerias depois da boa recepção da sua mixtape “Vendedor de sonhos”, lançada em 2018. O trabalho figurou na lista dos dez melhores do ano do site especializado Rap Sh!t, e Mallone ainda foi citado por Emicida em seu Twitter como um dos nomes da nova geração em que tem prestado atenção.

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Não é pouca coisa, certo? Mas para isso é preciso ralar e colocar o trabalho na rua, e RT Mallone está na pista com vontade. Com quase dois mil seguidores no YouTube, ele tem videoclipes que passam das dez mil visualizações, alguns indo além das 15 mil. No Spotify, são mais de dois mil ouvintes mensais, e o single “Sol de dentro” já encosta nas 20 mil audições. Na plataforma de streaming, a maioria das músicas do novo trabalho já ultrapassou a marca de mil reproduções.

Fruto da urgência

Quando conversou com a Tribuna, no ano passado, por ocasião do lançamento de “Vendedor de sonhos”, RT Mallone havia antecipado que seu primeiro álbum já estava em desenvolvimento e teria o título de “Eclesiastes”. Mas a vida é feita de planos que mudam por conta do inesperado, e eis que tudo tomou novos rumos no final do ano passado, quando ele foi gravar duas músicas em São Paulo e calhou que os singles se tornaram a pedra fundamental de “Roho Tahir”. “Quando gravei as duas faixas, eles sugeriram que eu crescesse com o projeto, e daí surgiu esse álbum”, explica. “O ‘Eclersiastes’ é um trabalho de anos, que ainda não está pronto, mas vai sair, não foi abandonado.”

Por conta disso, ele voltou ao estúdio em fevereiro para gravar as vozes de outras cinco músicas, trabalho executado em dois dias. Depois, foi questão de fazer a mixagem e masterização. A produção ficou a cargo de antigos e novos parceiros de Mallone, como Everton Beatmaker, Muxima, Nauak, Heron Francelino, ABNR e Lucas Borges. As participações especiais ficaram por conta de Isis Orbelli, Jé Santiago e Negus, fundador da Artefato.

“Primeira vez que trabalhei com uma galera de fora da cidade, mas rolou uma conexão muito forte. Não sei se pelas vivências de cada um, mas foi muito fácil de trabalhar”, elogia. “Os produtores chegavam com a ideia pronta, entraram de cabeça mesmo. O Negus fez a produção artística, e deu muitas ideias e orientações. Mostrou como é importante ser disciplinado, me ajudou a ter calma em alguns momentos. Graças a ele passei a ter uma visão mais profissional, de que o artista não trabalha sozinho. Trabalhar com a Artefato ajudou a deslanchar minha carreira, estão bem focados em divulgar o projeto. E não estou só com a gravadora: tem a agência Nest, aqui de Juiz de Fora, que está vendendo meus shows, não preciso mais me preocupar com isso.”

Meio e mensagem

Além dos serviços de streaming, dois videoclipes de músicas de “Roho Tahir” já estão no YouTube. Uma delas é “Okay” (5,7 mil visualizações), e a outra “Sem chance”, que tem a participação de Negus. “Ele é um cara que fala muito da questão da negritude, colocou um refrão muito forte na música”, destaca. Lançada na última semana, já bateu 1,7 mil visualizações.

Mais dois vídeos estão prontos para lançamento. Um deles é “Sangue de rei”, gravado no bairro onde o rapper ainda mantém os pés no chão enquanto a cabeça voa longe. “Parentes, amigos, moradores e outros rappers ajudaram a simular o Baile do Arado, que acontecia no bairro e hoje não existe mais. Foi um domingo memorável, e que ainda teve uma galera de outros bairros”, anima-se, antecipando que este deve chegar à plataforma digital no próximo mês.

Outro vídeo também gravado foi o da música “Noizke”, desta vez na Praça Jarbas de Lery Santos (a Praça do São Mateus) com uma turma do basquete. “Ela fala sobre materialismo, mas por outro ângulo. A periferia tem muito disso, de ver na TV o que você pode ser, mas que na realidade é diferente. Muitas vezes, a gente condena isso, porém entendo essa questão de querer estar bem, querer se sentir bem (ao comprar algo), tem muito a ver com a questão de ser negro, que é mal visto muitas vezes. Por isso esse materialismo, às vezes, é tão importante, hoje não vejo de forma negativa.”
RT Mallone aproveita para falar mais das letras do novo álbum, todas escritas há menos de um ano. “Elas são mais ‘cruas’. Esse trabalho tem uma sensação de pertencimento muito grande, fala muito sobre mim e até coisas não tão boas, quanto o próprio ego. Apesar de ‘Roho Tahir’ significar ‘alma pura’, ela – a alma – não é assim o tempo todo.”

Antes de decidir pelo nome definitivo, o rapper juiz-forano pensou no título “Ponto cego” ou seu correspondente em inglês, “Blind spot”, por conta da forma como se coloca nas letras, como observador em alguns momentos, em outros como personagem em primeira pessoa. “Isso tem muito a ver com o ponto de vista de cada um. Afinal, eu falo de coisas que vivi, de um ponto de vista mais aberto, mas que sempre pode ser interpretado de outra forma, por quem não tem a mesma vivência”, filosofa. “Esse lado mais ‘ponto cego’, em alguns momentos, vem do fato de que nunca fiz parte das gangues do bairro, mas sempre observava o que acontecia. Ao mesmo tempo, há o ponto cego de quem não conhece minha vivência. É preciso ouvir o álbum mais de uma vez, pelo menos, para entender que não existe apenas um lado.”

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Confiança e responsabilidade

Na conversa com a Tribuna ano passado, RT Mallone expressou pontos importantes para ele, como o apoio da família, trabalhar com amigos da cena local e o desejo de ver seu trabalho reconhecido e poder viver da sua música (“Ainda não vivo da música, mas pelo menos sobrevivo”). O caminho é longo, reconhece, mas as realizações em pouco mais de um ano o deixam animado e confiante em relação ao futuro.

“A recepção do ‘Vendedor de sonhos’ foi incrível e surpreendente, não só por estar na lista do Rap Sh!t. Sempre acreditei no projeto, mas era mais uma coisa para me apresentar. Alcançou muitas pessoas, fiz shows em São Paulo, Volta Redonda, Belo Horizonte… Vendi quase mil cópias da mixtape, e só não foi mais porque parei de fazer a prensagem. Percebi que o CD conectava as pessoas, sendo que no início pensava nele como algo mais local. Mas percebi que músicas como ‘Orgulho’ eram muito mais abrangentes. E essa repercussão criou uma expectativa muito grande, pelo menos para mim, em relação ao ‘Roho Tahir'”, diz o rapper, que espera assim abrir portas para outros artistas locais. “É importante destacar a qualidade do rap feito em Juiz de Fora.”

Com a família redobrando a força para que ele siga em frente – e até mesmo com os moradores do São Benedito, de acordo com ele, entrando na onda -, RT Mallone segue disparando seus versos para todos os lados em outros projetos; como diz, “a função do rapper é não parar”. Por conta disso, ele e o rapper Kali, de Belo Horizonte, gravaram o single “Poder”, com lançamento previsto para setembro e que teve participação especial de Djonga, outro nome em evidência do novo rap nacional (e que terá videoclipe também). Em parceria com Isis Orbelli, escreveu a letra e cantou em “Mundo novo”, single de Egydio. Além disso, lançou este ano no YouTube o videoclipe de “Orgulho”, encerrando o ciclo de “Vendedor de sonhos”; o free verse “Longe de casa”, em que mandou letra própria sobre uma batida de Kendrick Lamar. E ainda teve o single “Ouro, incenso e mirra”.

“Tenho mais alguns singles para lançar nos próximos meses. Quero aproveitar o momento, a confiança que tenho com o lançamento do álbum. Estou numa fase muito feliz da minha vida. A minha fase no rap é a minha fase no bairro, em que sou reconhecido como artista; ser visto com esses olhos é muito bom, pois aumenta nossa autoestima.”

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