A arte, o caos e a ordem da banda Ou Sim
Grupo formado por nomes de diversas expressões artísticas lança primeiro álbum nesta quinta-feira (8) no Teatro Paschoal Carlos Magno
Ao pesquisar na galáxia de dados que é essa coisa chamada internet, não faltam pensadores, filósofos, artistas, teóricos que tratam de ordem e caos, às vezes colocando a arte no meio. “A ordem do caos está no caos da ordem”; “Eu trouxe ordem a partir do caos”; “O caos gera vida, ao passo que a ordem gera o hábito”; “O caos é uma ordem por decifrar”; “A arte é a expressão da ordem no meio do caos”; “A tarefa atual da arte é introduzir o caos na ordem”. Como se percebe, arte, caos e ordem podem andar bem juntos, não ser opostos e sim complementares, dependentes um do outro.
Se pensarmos que pode haver mais ordem no caos que na própria ordem, o “caos” das oito cabeças pensantes do grupo Ou Sim, formado por artistas juiz-foranos das mais diversas origens e influências, gerou o seu primeiro produto. “Ou Sim: Música, poesia e outras esquinas”, primeiro álbum do grupo formado em 2011, já pode ser conferido em diversas plataformas digitais. Além disso, o trabalho financiado por meio da Lei Murilo Mendes terá show de lançamento nesta quinta-feira (8), às 20h, no Teatro Paschoal Carlos Magno. No repertório, as canções do álbum ganham a companhia de outras que ficaram de fora e também releituras/citações de algumas das influências do grupo, como Walter Franco, Sérgio Sampaio, Itamar Assumpção, Mutantes e Caetano Veloso.
Influências, aliás, não faltam no octeto formado por André Monteiro, Bruno Tuler, Edson Leão, Edwald Winand, Valéria Leão, Nathalia Guimarães, Rene Eberle Rocha e Giovanni Stroppa – que entrou no lugar de Stephan Rangel, responsável pelas guitarras na gravação do disco mas que se desligou do projeto ao mudar de cidade. Tem de (quase) tudo um pouco: Clube da Esquina, Tropicalismo, literatura modernista brasileira e da geração beat, punk rock, a Vanguarda Paulista dos anos 80, Poesia Marginal e uma lista que daria para preencher muitas e muitas linhas.
Ampliando limites
Para Edson Leão, quem for até o Paschoal Carlos Magno poderá conferir ali no palco o intercâmbio proporcionado pelas origens de toda essa gente, que segundo ele resulta numa “linguagem musical e poética bastante inquieta, que a cada faixa traz surpresas, transitando por um universo diversificado de referências.
“Acho que o público pode esperar justamente a diversidade, a mistura e a comunhão de diferenças e singularidades de pessoas e referências musicais e poéticas”, reforça André Monteiro. “Como já disse em outros carnavais, a gente é um bando essencialmente experimental, tal como está sugerido no título do CD. E quando falo de ‘experimental’, estou levando em conta a própria etimologia da palavra e sua raiz grega, que tem a ver, obviamente, com ‘experiência’, palavra nascida da junção de ‘ex’ (movimento para fora) e ‘peras’ (limite). Fazer uma experiência é pôr em ação uma tentativa de sair dos limites. Ou, no mínimo, ampliar limites.”
Para o artista, é preciso então uma abertura e à diversidade do outro. “No nosso caso, tem a ver com uma abertura existencial entre as pessoas da banda e, também, com a tentativa de experimentar e promover diálogos entre diversas searas do campo artístico. A banda, para além dos limites estritos da música, experimenta a poesia lida e falada, a performance cênica e a performance visual. O projeto é experimental, também, porque, ainda que marcado por diversas referências literárias e musicais, não se prende a elas, procura abrir os limites de seus rótulos, fazendo delas estímulos vitais para pesquisas estéticas e existenciais próprias.”
“Os integrantes (da Ou Sim) são colecionadores, estudiosos de música, então todas essas influências estão na banda”, emenda Giovanni Stroppa. “E ao mesmo tempo não somos uma banda cover, buscamos fazer uma reapropriação artística de todos esses movimentos e colocar isso dentro de uma coesão que tenha a ver com as individualidades dos integrantes.”
Origem pelo acaso
Edson Leão conta que o embrião da Ou Sim é fruto de uma proposta feita em 2009 a Bruno, Edwald, Valéria e André de organizarem uma semana de mostras de filmes, debates e shows para comemorar os 40 anos, na época, do Festival de Woodstock.
“De uma fala da Valéria sobre literatura Beat surgiu a ideia de fazer um trabalho de leitura poética conjugada com música, como os beatiniks faziam com o jazz. Surgiu o espetáculo ‘Ou Não’, com textos de poetas beat, poesia marginal dos anos 70, modernistas, lidos sobre canções ligadas à contracultura.
Com o tempo rolaram as primeiras participações no Encontro de Compositores, em que integrantes do ‘Ou Não’ (nome inspirado em Walter Franco) tocavam/cantavam juntos composições próprias, e daí a ideia de fazer um trabalho prioritariamente autoral, com uma tônica nas nossas referências em comum das contraculturas.”
“No início pensávamos que seria um projeto pra uma apresentação, no formato violão e voz, com recitação. Outro aspecto curioso foi perceber que, talvez por envolver tanta gente, várias das ideias propostas lá no início continuaram válidas e parecem até mais urgentes ao serem lançadas no momento atual. Muitas canções parecem escritas para o momento atual, como se estivéssemos captando aspectos da realidade que estavam se movimentando ainda em camadas profundas da sociedade, mas que já estavam ali. É uma incômoda sensação de intuir o ‘ovo da serpente’.”
Lidando com o ‘caos’
A produção de “Ou Sim: Música, poesia e outras esquinas” ficou sob a responsabilidade de Julião Júnior, do estúdio Soundscape. “Ele foi de uma sensibilidade e apuro técnico muito grande, ajudando a lapidar ideias que surgiam em profusão por parte dos integrantes, sem podar e sem tentar ‘formatar’. Com certeza ele deixou uma assinatura junto com a banda, nunca se sobrepondo à liberdade estética proposta pelo grupo”, elogia Edson. “Ele atuou como uma espécie de Rogério Duprat no disco”, complementa André. Para a concretização do trabalho, o grupo contou ainda com parcerias com Danniel Goulart, Dudu Costa, Elizabeth Machado e Adauto Villela, além da participação especial de Caetano Brasil tocando clarinete em “Quadrilha”.
Antes, porém, era preciso lidar com o próprio “caos” de ter tanta gente com ideias, origens e influências próprias. “Somos muitos, fora os ‘agregados’ que já trabalharam com a gente fazendo produção, direção cênica etc. E além de muitos, somos muito distintos uns dos outros. Mas o que temos em comum é exatamente o desejo pela mistura. A busca pelas coisas inusitadas que os encontros produzem”, afirma André Monteiro. “Quando a gente se reúne, sinto que há uma disposição para nos caotizarmos e nos entregarmos ao que, até então, ainda nos era escuro e desconhecido. Aliás, creio que toda invenção artística parte de uma mistura caótica. De um acontecimento tempestuoso e inusitado. Algo que nos tira do já dito, do já pensado e do já sentido e nos projeta para aquilo que Oswald de Andrade chamou de a grande alegria da poesia: ‘a alegria dos que não sabem e descobrem’.
Edson Leão vai na mesma toada, lembrando que em muitos momentos o princípio gerador foi o caos, em que se deixava as ideias fluírem, sem estabelecer regras externas. “Depois vinha um trabalho, nem sempre indolor, de encontrar uma ordem interna para esse caos, uma ordem a partir do que a originalidade de cada canção sugeria. Aí entra o exercício do diálogo que, realmente, não é fácil em grupos grandes. Acaba sendo um exercício de como atuar em coletividade, pode ser tenso às vezes, lento, mas permite chegar a resultados mais ricos do que se fosse tudo direcionado por um compositor ou instrumentista.”
“Essa ‘caotização’ nada tem a ver com descuido ou desleixo”, prossegue André. “Ao contrário, o que tentamos é, a todo tempo, achar formas musicais e poéticas para traduzir esses estados inéditos. Nos guiamos por um rigor formal e, ao mesmo tempo, vital, através do qual o caos e a ordem se beijam e se abraçam.”
Caoticamente democráticos
Por ter entrado para a banda depois da gravação do disco, Giovanni Stroppa aproveita para dar suas impressões de quem chegou como um “elemento estranho” ao “caos organizado”. “Logo percebi que é uma banda diferente das demais que tive exatamente por essa liberdade de gênero musical. A gente sempre tem aquela coisa de estar numa banda que tem um estilo, e a Ou Sim permite uma liberdade gigantesca para seus integrantes trazerem as mais diversas sonoridades e palavras para dentro da criação do grupo. Lida com o caos da melhor forma, abraçando-o.”
Para gerar a ordem em meio ao caos, porém, uma palavra era essencial: democracia. “Como em todo grupo, envolveu muito debate, argumentação, uma cota de cansaço, mas sempre existiram muitas unanimidades também, canções que todos identificam como ‘peças chave’ para a estética e a ética que o grupo delineou nesse álbum”, lembra Leão. “Acho que procuramos nos ouvir e, ao mesmo tempo, ouvir, mais do que as demandas pessoais, o que o próprio disco (em sua concepção poético-musical coletiva) demandava para sair e para entrar. A meu ver, não trabalhamos com políticas prévias de cotas autorais, mas pensávamos nas demandas políticas e afetivas da própria dinâmica da obra”, pontua Monteiro. “De vez em quando, houve (e ainda há) divergências e tensões, o que é normal em qualquer relacionamento.”
De fora para dentro, de dentro para fora
Ainda a respeito do processo de criação coletiva, como muita coisa vinha de fora para o coração do coletivo musical, Edson Leão diz que não havia como saber, antecipadamente, o que poderia “funcionar” com a Ou Sim. O lance, então, era ver o que rolava. “O caminho é lançar as ideias e ver como elas vão ser recebidas pelo grupo. Às vezes, a filtragem é automática, ou o grupo endossa, ou tem argumentos convincentes de que dada contribuição não é adequada, mas, às vezes, o caminho é testar, e nisso até ideias que inicialmente não pareciam boas podem acabar se revelando as melhores e mais criativas. Não tem fórmulas”, acredita, acrescentando que muitas vezes a melhor parte do processo era ver essa ideia sendo modificada, ganhando vida. “Por mais que a gente soubesse o quanto de trabalho e de experimentações que tinham por trás de cada música, a sensação de chegar a um resultado coletivo é sempre mágico.”
Ao mesmo tempo, esse é um processo de mão dupla, em que a participação no coletivo pode afetar o individual, nas carreiras próprias de cada um. “Acho que a resposta a essa questão acaba sendo individual. Da minha parte, a Ou Sim me ajudou a levar mais a sério a escrita poética. Antes eu julgava que meu espaço de criação central era a canção, e meus exercícios poéticos visavam só a palavra cantada. Ao longo do processos, outras possibilidades de relação surgiram, inclusive um projeto paralelo, de leituras poéticas em diálogo com colagens a partir de bases em vinil (o Verbo em Discontrole, que deve muito à experiência com Ou Sim) . E a coragem de tornar público poemas, tanto em leituras quanto nas redes. Outro ponto foi o de levar parte da liberdade formal experimentada no Ou Sim para os processos de criação junto a outros grupos”, diz Edson.
No caso de André Monteiro, ele pontua que o caminho foi o inverso. “Sempre fui mais ligado à palavra do que à música, embora tenha também um trabalho de composição de canções. Depois do Ou Sim, passei a musicar e performar mais a palavra. Muitos dos livros que fiz desde 2014 foram lançados com performances musicais, audiovisuais e cênicas. Em muitos desses lançamentos, contei, aliás, com a participação de membros da banda.”
Lei Murilo Mendes
Recentemente, o governo municipal anunciou o novo edital da Lei Murilo Mendes, que passou em branco nos anos de 2017 e 2018. Por conta disso, o álbum da Ou Sim é um dos poucos projetos com apoio da lei a serem lançados em 2019. Tanto André quanto Edson comemoram que a iniciativa, ao invés de desaparecer nas memórias passadas, agora já vislumbre um novo futuro.
“Acho que a função do Estado (quando ele é pensado não sobre, mas com a sociedade) é justamente fomentar projetos de arte e cultura que já não estejam postos (dados, ditos e pensados) pelo mercado dominante de uma determinada cultura. Só assim é possível concretizar projetos experimentais, que tragam respiradouros e novas possibilidades de vida para a diversidade criadora de uma sociedade. Nesse sentido, fico muito feliz com o anúncio do novo edital”, afirma André Monteiro.
“A Murilo Mendes é fundamental para a dinâmica cultural da cidade, move uma cadeia econômica e tem contribuído para que as identidades que formam essa coletividade se expressem. Num momento em que o país está dividido entre um mercado muito focado no entretenimento puro e um enfraquecimento – quando não desmantelamento – nacional das políticas públicas, Juiz de Fora se coloca na vanguarda ao lutar pela manutenção dessa ferramenta de incentivo”, elogia Edson Leão.
Ou Sim
Show de lançamento do primeiro álbum do grupo nesta quinta-feira (8), às 20h, no Teatro Paschoal Carlos Magno (Rua Gilberto de Alencar s/n)