Precariedade do futebol feminino leva meninas a buscarem outras alternativas profissionais

Ex-goleira da Seleção sub-20 e jogadora do futsal da UFJF enfrentam a realidade da modalidade no Brasil


Por Bruno Kaehler

30/06/2019 às 06h31

O início quase sempre rodeado apenas de meninos. A habilidade com a bola nos pés não bastava. O drible diário era no preconceito. Mais cansativa se fazia a busca por uma equipe feminina do que a sessão de treinos e jogos. Este é parte de um roteiro comum na carreira de jogadoras de futebol de Juiz de Fora e região. Assim como a luta pelo espaço no futsal, caso de Maria Eduarda Oliveira, 16 anos, jogadora do time feminino da UFJF. Natural de Manhuaçu (MG), a popular Duda passa, desde os 8 anos, de projeto em projeto em busca do sonho de se tornar profissional.

Duda atua no time feminino de futsal da UFJF e sonha com a profissionalização e melhores condições no esporte (Foto: Fernando Priamo)

“As dificuldades foram muitas. Infelizmente uma das coisas que passamos é o preconceito. Comentários como ‘mulher não sabe jogar futebol’, ‘lugar de mulher é na cozinha’. Comecei na escolinha do Granbery, mas por conta da idade tive que sair. Fui para o Flamengo, treinei por um ou dois anos lá, mas o time não se firmou. Iam treinar três, quatro meninas regularmente, então decidi sair. Fui para o Vasco, treinei pouco tempo lá e comecei a desanimar, não achava um time que conseguia me firmar. Tentei procurar escolas femininas na cidade, mas não achava nenhuma que não tivesse ligação com o masculino. Treinei ainda society e campo na escolinha da Inter de Milão de Juiz de Fora. No dia da seletiva só tinha eu de menina. Treinei lá por dois anos e, por falta de atletas, não tiveram time feminino também. Foi quando uma amiga divulgou uma seletiva do time feminino da UFJF”, relembra Duda.

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Desde setembro do ano passado, então, a jovem parece ter se encontrado. “Passei na seletiva para jogar no time sub-17, no qual estou até hoje. Não tenho palavras para descrever o quão incrível esse time é e tem sido na minha vida. Evoluí muito ali dentro, tanto como jogadora e como pessoa também. Me sinto em casa, jogando, fazendo o que eu amo e zoando com as meninas. As amizades que fiz lá são sensacionais. Costumamos dizer que a UF é uma família”, exalta a jogadora.

Só nas férias

Eis que um novo desafio, contudo, surgiu para Duda. A atleta passou em um teste do Botafogo. A realidade do futebol feminino no país, no entanto, voltou a bater na porta da mineira. “Eu e mais uma menina da UFJF fomos aprovadas. Porém, como os campeonatos iam começar agora e nós somos de outra cidade, seria muito difícil irmos duas, três vezes por semana lá participar dos treinos. Até mesmo porque não posso deixar a escola agora, mesmo que o futebol seja meu foco. Então eles decidiram manter as jogadoras que moram na região do Rio de Janeiro no time principal e disseram que poderiam nos chamar para participar de outras competições ao longo do ano em épocas de férias, por exemplo”, conta Duda.

A atleta de Manhuaçu, agora, seguirá os treinamentos na Federal, com a atenção voltada a novas oportunidades que possam aparecer. Desistir não é uma opção. “Não posso depender da resposta de um time para sempre, até porque não tenho nem a certeza de que irão mesmo nos chamar. As condições de morar em outra cidade no momento não são boas para mim e seria muito difícil, ainda mais na minha idade, então continuo atrás de alguma chance de teste, olheiro, seletiva. Meu principal objetivo é conseguir virar profissional e fazer minha história no futebol”, projeta a atleta.

Flávio optou pela bolsa de estudos nos EUA por conta da falta de investimento no futebol feminino no Brasil (Foto: Arquivo Pessoal)

Adeus à Seleção por bolsa de estudos

O cenário que ainda vigora no futebol feminino também influenciou no destino de Flávia Guedes, 24, de Mar de Espanha (MG). A goleira chegou a atuar no Palmeiras em 2010, no São José (SP), vitoriosa equipe brasileira entre as mulheres, e até na Seleção Brasileira sub-20, em 2013, aos 18 anos. Foi quando teve de tomar uma difícil decisão.

“Nesta época eu já tinha planos de estudar nos Estados Unidos, recebia muitos convites para jogar pela Liga Universitária. Foi um momento difícil, porque eu sabia que perderia visibilidade aqui. Por outro lado, eu estava no limite da idade para ir embora. Era uma decisão complicada. Pé no chão, eu escolhi ir. Minha família sempre me apoiou integralmente no esporte, com a ressalva de que eu priorizasse os estudos, por causa da instabilidade, o pouco reconhecimento da modalidade, todas as dificuldades que enfrentamos por aqui. Em agosto de 2013 fui para os Estados Unidos e fiquei lá até este ano, quando me graduei em ‘Business'”, conta Flávia.

Fora do país, a arqueira se afastou do futebol brasileiro. “Estava muito focada no meu desempenho pelo meu time e em manter boas notas na faculdade. A falta de investimento no futebol feminino brasileiro foi um grande fator a fazer com que eu priorizasse primeiro meus estudos e depois o futebol. Tudo sempre foi muito incerto, e eu quis ter outro plano. Ganhei a bolsa de estudos da Columbia College, e meu compromisso, além de manter notas altas, era melhorar a colocação da universidade no ranking da Liga Universitária (NAIA), ingressar no National. Voltei por pouco tempo ao Brasil e, em agosto de 2018, surgiu outro convite para eu voltar aos Estados Unidos para terminar a faculdade e trabalhar treinando as goleiras, em Salem. Eu me graduei lá, pela Salem University em West Virginia, em junho desse ano, em ‘Business adminstration – Sports management’ (gestão desportiva). Agora pretendo voltar lá para fazer mestrado na área de marketing, provavelmente.”

‘Business’ e esporte

Em território norte-americano, Flávia chegou a ser eleita a melhor goleira da Liga Universitária de Futebol, em 2016. Só voltou ao Brasil novamente, neste ano, de forma temporária. Apesar de ainda se enxergar em campo como goleira, a prioridade segue na educação. “Não descarto a possibilidade de voltar aos gramados. É algo que eu sempre amei fazer, e esse clima de Copa volta tudo, me faz ter mais vontade de voltar. Mas hoje me vejo mais focada em continuar estudando, fazer um mestrado e seguir em frente a minha carreira de ‘Business’. Quero procurar algo que relacione ‘Business’ e esporte, que são minhas duas maiores paixões atualmente. Acredito que haja muitas portas abertas caso eu decida voltar ao futebol. Porém, hoje, tenho que olhar mais os meus estudos. De qualquer forma, todas as oportunidades maravilhosas que tive me foram dadas pelo futebol feminino. Estudar nos Estados Unidos foi uma delas”, destaca.

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‘O futebol feminino está crescendo’

Com a Copa do Mundo de futebol feminino em voga, e a obrigatoriedade de cada equipe profissional que disputa a Série A do Campeonato Brasileiro e a Copa Libertadores da América formarem times femininos – impostas por CBF e Conmebol, respectivamente -, o cenário da participação da mulher na modalidade parece entrar em novos rumos. Este, ao menos, é um dos pontos levantados pelo trabalho de conclusão de curso de Thaís Pifano e Ighor Prado para bacharel em Jornalismo pela UFJF, sob a orientação do professor Márcio Guerra, com produção, inclusive, de documentário a partir da coleta de relatos de atletas e treinadoras de Juiz de Fora.

“Dentre os pontos positivos podemos destacar o que várias das entrevistadas disseram: o futebol feminino está crescendo. Há mais pessoas acreditando que pode dar certo, investindo, ainda que pouco. As quadras durante os jogos da Copa Bahamas estavam lotadas, cheias de gente para assistir meninas jogando bola, torcendo, vibrando. As próprias personagens do documentário são otimistas quanto ao futuro da mulher no esporte. Isso, claro, se deve também à Copa do Mundo, mas não só por isso”, relata Thaís.

Em contrapartida, também foi possível diagnosticar semelhanças e pontos ainda frágeis no processo de fortalecimento da modalidade no país. “Posso afirmar que 90% das entrevistadas relataram casos de preconceito dentro da própria família. Não surpreende muito, porque é um problema geral. Infelizmente, o primeiro apoio que a menina procura quando quer jogar futebol é dentro de casa, e é onde encontram a primeira negativa. Há ainda os críticos de plantão, que estão aí para desestimular e falar mal do futebol feminino. E, por vezes, o próprio meio sabota a causa. O termo ‘sororidade’, tão utilizado atualmente, precisa ser mais aplicado entre as praticantes de futebol e futsal da cidade”, avalia Thaís.

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