Jodeny: A rotina de luta na cantina que vive do luto

Rodeado por uma inusitada coleção de peças como liquidificadores e rádios, Jodeny conta sobre o trabalho à frente da cantina do Cemitério Municipal


Por Mauro Morais

30/06/2019 às 07h00

 

Jodeny está há 14 anos tocando a lanchonete do cemitério, onde ouve diferentes histórias. “Aqui dá de tudo”, diz. (Foto: Fernando Priamo)

A cantina de Jodeny Nogueira Alves tem coxinha, cigarrete, quibe e outros salgados. Tem, também, refrigerante, biscoitos, água, cigarros, açúcar, papel higiênico, papel toalha, pasta de dente, escova de dente e SuperBonder. “Tenho linha, agulha, de tudo um pouco”, ri. Localizado no Cemitério Municipal, o negócio de Jodeny tem choro e tem vela. “Antigamente essas coisas de armarinho vendiam mais. Hoje os corpos não podem ser arrumados aqui mais. Antes eles costumavam fazer a barba, arrumar as roupas. Agora é diferente, mudou muito”, elogia ele, atrás do balcão e rodeado por aparelhos antigos e repetidos. O pai, conta, era um colecionador inveterado.

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“Liquidificadores ele tinha uns 80. Rádio, tem 15, um ainda na caixa, zerinho, até com nota fiscal. Microondas ele tinha 15. Tudo ele gostava de colecionar. Relógio tem 200. Caneta, umas 500, umas de 1910, 1915. Eu dei continuidade a isso. O pessoal fica encantado. Esse liquidificador tem 60 anos e motor de enceradeira. Máquinas de costura ele tinha umas cinco. Aquela ali é muito antiga”, aponta para o alto, para uma prateleira da lanchonete. “Rádio, eu comprei outro dia, e agora foi para 16. Continuo fazendo o que ele fazia, porque também gosto.”

A lagartixa, de plástico e pregada numa prateleira bem ao centro da cantina, faz parte da decoração. Jodeny não se recorda quem a colocou ali. Mas mantém, porque faz rir num lugar onde o comum é chorar. Aos 48 aos, 14 deles dedicados ao lugar, o empresário acostumou-se com o luto. “Aqui é muito sossegado. Tranquilo demais. Melhor que qualquer outro local. Você vê o sofrimento das pessoas, mas é aí que tem que ser maleável, educado”, explica.

Em seu dia a dia na cantina, Jodeny convive com a tristeza e a dor, o que, garante ele, exigem um tratamento diferente, atencioso e afável. (Foto: Fernando Priamo)

“Nada me faltará”

Na barriga Jodeny aprendeu a vender. “Minha mãe estava grávida e eu já estava atrás do balcão”, conta ele, que cresceu ao lado de quatro irmãos e muita fartura. “Meu pai tinha uma situação muito boa. A vida inteira mexi com vendas. Já tivemos restaurante no Salvaterra, o Lua Bonita, na BR-040, o Universo, na Floriano (Peixoto), o Pablo’s, na Rio Branco, o Vivabella. Meu pai tinha dez restaurantes”, aponta, referindo-se ao empresário Jorge Sabino Alves, antigo presidente do Sindicato de Hotéis, Restaurantes, Bares e Similares de Juiz de Fora. Dono de um patrimônio superlativo, o patriarca deu conforto aos cinco filhos, mas não deixou de apresentar-lhes o trabalho. “Aos 12 anos, eu já tinha carteira assinada. Já limpei esgoto no restaurante dele. Trabalhava como qualquer outra pessoa. Não tinha nada de mão beijada. Quando eu queria alguma coisa, ele mandava eu trabalhar para ter. Com 13 anos, eu tinha moto, aos 15 anos, eu tinha um carro, mas tudo trabalhando muito”, recorda-se o filho caçula, que teve sua primeira oportunidade no famoso Restaurante Universo. E foi seguindo o pai em seus empreendimentos. “Carnaval no Vivabella eu ficava quatro dias tomando conta, sem parar”, lembra ele, que estudou em colégios particulares, concluiu o ensino médio e preferiu continuar trabalhando a dedicar-se aos estudos. Antes da lanchonete, que inaugurou após uma boa reforma já prevista na primeira licitação que venceu, vendia carros numa loja no Centro. “Cansei. O cara queria comprar carro velho e levar em mecânico e tudo mais. Quer um carro velho que não teve nenhum esbarrão? Compra um carro novo, então”, brinca. Numa lista de outros negócios e áreas, o empresário nunca se afastou dos balcões. “Sempre fui virão.”

Alimentos ocupam os balcões da lanchonete, enquanto nas prateleiras estão peças da coleção iniciada pelo pai, como os liquidificadores (no canto superior direito) e a máquina de costura (no alto, ao centro). (Foto: Fernando Priamo)

“Saudades da família”

No alto da parede da cantina, um quadro preserva uma fotografia de Jorge ao lado do ex-governador de Minas Gerais Hélio Garcia. A imagem está só ali, mas o pai está por toda parte. “Parece que foi ontem que ele foi embora. Sinto falta dele até hoje”, emociona-se. “Ele estava aqui de manhã e, de tarde, morreu. Foi levar minha mãe no Monte Sinai, para fazer um exame, passou mal e morreu. No dia 28 de março de 2016. Tinha 74 anos. Fez só até a quarta série, mas era um dos caras mais cultos que conheci na vida. Ele conversava sobre tudo. Meu pai leu mais de cem livros tendo só a quarta série. Foi presidente do sindicato patronal. Ele tinha fotos com todo mundo no Universo, com Chico Anysio, com Dedé, Zacarias, Antônio Ermírio de Moraes, Brizola, Lula, Sidney Magal, Benito de Paula”, orgulha-se. “Era um cara muito ativo. Ia todo dia jogar porrinha no Parque Halfeld. Era muito conhecido na cidade.” Aposentado aos 42, Jorge nunca parou de trabalhar. Chegou a tocar um restaurante na BR-040, mas, asmático, não suportou o frio e, também, a violência. “Fomos assaltados três vezes. Minha irmã estava grávida quando um cara entrou, deu um tiro e quase pegou na cabeça dela”, lembra Jodeny, que após abrir a cantina no Cemitério sempre teve o pai como companheiro. “A gente conversava sobre tudo”, diz ele, sobre o pai que foi enterrado no Parque da Saudade, onde a família mantém um jazigo.

Cantina de Jodeny abre e fecha de acordo com o movimento das capelas: se o cemitério enche, ele fica até mais tarde e abre mais cedo. (Foto: Fernando Priamo)

“Em paz”

Na rotina de Jodeny, estão pessoas que projetam numa garrafa da água ou num cafezinho a pausa para o sofrimento, o fôlego. Ele sabe que trabalha com gente fragilizada, vulnerável. E diz ser esse o grande desafio. “Aqui dá de tudo. Tem que tratar todo mundo bem, com educação, porque ninguém carrega estrela na testa”, pontua, afirmando saber de algumas histórias das mortes. Todas não há tempo. Narrativas que envolvem crianças são as que mais mexem com ele. “A última bebezinha que vi era uma criança linda, parecia uma boneca. Nunca vi uma menina tão linda na vida. Depois disso nunca mais quis ver”, comenta. Outro dia Jodeny teve um amigo velado na capela bem ao lado de onde trabalha. Semanas antes haviam se encontrado, num outro velório. A vida é ligeira, aprendeu. E todos os dias alguém se vai. O empresário conta já ter ficado 24 horas aberto. Hoje determina o fechamento e a abertura de acordo com o movimento. “Uma senhora, um dia, que teve 800 pessoas aqui durante a noite. Outro velório me fez sair daqui às 3h40 e voltar às 5h30. Quando o velório é de pessoa idosa, as pessoas agora costumam fechar a capela e voltar no outro dia”, observa. Uma funcionária o ajuda nas tarefas e a mãe também é parceira, principalmente nos dias em que Jodeny escolhe folgar. Por dez anos, o filho trabalhou com o empresário. Fruto de seu primeiro casamento, o rapaz, hoje com 27 anos, fez um curso de empilhador e passou num concurso para a Petrobras. Há alguns anos, vive na Região dos Lagos. “Todos os dias a gente se fala”, afirma Jodeny, que se divide entre sua casa, na Praça Agassis, e a da mãe, no Poço Rico. “O maior tempo que passo é aqui. Mas faço o que gosto.”

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