Caso Kiss: uma busca permanente por justiça


Por Daniela Arbex

23/06/2019 às 06h18

Quando se despediu do filho no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, no dia 24 de janeiro de 2013, Paulo e Fátima de Carvalho jamais imaginaram que seria a última vez. Empolgado com a chance de comemorar seu aniversário de 32 anos no Rio Grande do Sul, Rafael abraçou os pais e seguiu pelo portão de embarque. Ao cruzar a porta de vidro, ele ainda olhou para trás e estampou seu belo sorriso. O combinado era que os pais o buscassem na semana seguinte.

Rafael, no entanto, retornou para casa em um caixão que foi despachado no mesmo setor de mercadorias da companhia aérea. Seu nome figurava entre os 242 mortos da boate Kiss, que incendiou no dia 27 daquele mês na cidade gaúcha de Santa Maria. Como todos os outros, Rafael morreu asfixiado pela mistura do cianeto e do monóxido de carbono liberados pela queima de espuma tóxica e irregular colocada, artesanalmente, no teto da boate por três funcionários da casa noturna, dois deles faleceram no incêndio.

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Com quase 1.200 pessoas em um local com capacidade para a metade, a Kiss tornou-se uma armadilha. Ficaram encurralados diante da única porta de entrada e saída da boate. Ao todo, além dos mortos, 636 jovens ficaram feridos, alguns com lesões permanentes, como Kellen Ferreira. Na época com 20 anos, ela sofreu diversas queimaduras e precisou amputar a perna direita. Centenas ainda têm problemas respiratórios pela inalação da fumaça.

Para além da dimensão da tragédia, o caso Kiss ficou conhecido no mundo como sinônimo de impunidade. Como 242 mortes não produziram nenhuma responsabilização até agora? Sem respostas coerentes, as famílias estão a longos seis anos lutando para que o Judiciário cumpra o seu papel. Mais de dois mil dias se passaram. Tempo demais. A dor da falta de justiça ficou tão grande quanto a da perda.

No último dia 18 de junho, porém, a 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu mandar para júri popular os réus do processo, que ainda poderão recorrer. Dois anos antes, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia desqualificado o dolo eventual, dizendo que não havia ficado comprovada a intenção de matar, apesar da existência de barras irregulares que dificultaram a fuga dos frequentadores da boate, de as portas terem sido trancadas pelos seguranças para evitar a saída sem pagamento de comanda e de ter sido utilizado fogo de artifício dentro de um local fechado. Na prática, a Kiss ficou aberta por 41 meses e 27 dias. Nesse período, por 31 meses, funcionou sem o Alvará Sanitário, incluindo o dia da tragédia. Por 20 meses, funcionou sem a Licença de Operação Ambiental. Por 17 meses, funcionou sem o Alvará de Prevenção e Proteção Contra Incêndio. Por sete meses, funcionou sem o Alvará de Localização.

Com tantos elementos de prova, a tese de homicídio culposo não se sustenta, embora tenha sido acolhida, equivocadamente, pelo Tribunal de Justiça gaúcho. Apesar de saberem que nada trará os filhos de volta, os pais da boate Kiss não querem que outras famílias passem pela dor permanente à qual foram brutalmente expostos.
Ao final do julgamento do STJ, em Brasília, Paulo Carvalho, o pai de Rafael, que esteve presente na seção, voltou para São Paulo acompanhado, pela primeira vez, de esperança. “Indo com o coração apertado, mas confiante que, um dia, teremos a paz da justiça.”.

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