Quadrinhos brasileiros para quem precisa de bons quadrinhos brasileiros

Por Júlio Black

08/05/2019 às 07h30 - Atualizada 07/05/2019 às 15h57

Oi, gente.

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Uma das grandes lacunas desta coluna e dos meus 30 e tantos anos como aficcionado por quadrinhos é a ausência de HQs nacionais na minha lista de leituras. Mesmo que tenha b²-4ac motivos para isso (grana, distribuição, network), há momentos em que o jogo vira, babe. Foi o que aconteceu há algumas semanas, quando um pequeno mas promissor lote de títulos made in Brazil chegou às nossas mãos, ávidas por conhecer aquela turma que não tem a visibilidade de um Mike Deodato, Ivan Reis, Fábio Moon e Gabriel Bá, mas capaz de produzir trabalhos tão interessantes quanto.

Como o espaço é pouco e o tempo é curto, selecionamos três títulos para comentar e recomendar aos ah migos leitores e ah migas leitoras. Os quadrinhos nacionais vivem um bom momento, e colocar essa gente talentosa no radar é preciso.

Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.

GUERRA 1914-1918, de Julius Ckvalheiyro

Esta é uma graphic novel que chegou com imperdoáveis (da minha parte) cinco anos de atraso (a primeira tiragem é de 2014, e a que recebi é a quarta, de 2018). Um dos motivos é a minha paixão particular pela História, coisa que vem desde o colégio e que me impressiona como as pessoas dão pouco valor ao passado, ignoram que esta guarda tantas lições para o futuro e ajuda a não repetirmos os mesmo erros – ou até mesmo piorá-los. A HQ de Julius Ckvalheiyro, por sinal, chegou num momento propício, pois li dois livros a respeito da I Guerra Mundial no início do ano.

Três são os destaques da história, e dois os defeitos. Primeiro vale elogiar a arte do desenhista, que aposta num preto e branco bruto, “sujo”, “realista”, que ganha ainda mais força pela arte-final feita no computador, que dá às ilustrações volume e profundida nas gradações de preto, branco e cinza. Os detalhes dos soldados, tanques, aviões, da destruição, do desespero dos combatentes, é impactante. Outro ponto positivo é a escolha por mostrar o conflito – em cinco das seis histórias – por meio de figuras anônimas, como os soldados perdidos em meio ao mar de lama e sangue nos campos franceses. A única história dedicada a uma figura histórica é a última, protagonizada por Manfred von Richthofen (sim, o antepassado daquela Suzane que participou do assassinato dos pais), mais conhecido como “Barão Vermelho”. Por fim, a preocupação com a precisão histórica, com textos que ajudam a entender o cenário do conflito entre nações.

O problema é que estes textos, ao mesmo tempo, são um dos defeitos de “Guerra 1914-1918”. Como eles introduzem e/ou encerram os capítulos, acabam por quebrar o ritmo da leitura da HQ, mesmo que ajudem a entender o contexto em que se passam os dramas contados por Julius. E se a decisão por contar o conflito pela perspectiva dos anônimos aproxima o leitor, também é prejudicial quando parece não haver um foco definido, como é o caso do genocídio dos armênios perpetrado pelos “Jovens Turcos” do Império Otomano.

“Guerra 1914-1918” reúne uma arte excepcional com uma história que não deve ser esquecida, mais que compensando os problemas citados. E já estamos na vontade de ler o volume sobre a II Guerra Mundial. Para os interessados, dá para entrar em contato pelo perfil de Julius no Instagram (@juliusartstudio).

LAMA, de Rodrigo Ramos e Marcel Bartholo

Segunda parceria do roteirista Rodrigo Ramos com o desenhista Marcel Bartholo – e primeira HQ do selo Carniça Quadrinhos -, “Lama” tem um pé em uma das tantas tragédias recentes do Brasil para criar uma história de terror que mistura fatos reais, folclore brasileiro, H. P. Lovecraft e “Monstro do Pântano”. Inicialmente pensada como um conto, ela tomou corpo à medida que a pesquisa de Rodrigo avançava.

Desta forma, “Lama” transita entre o passado e presente para mostrar a figura do Ipupiara, ser mitológio meio homem/meio peixe com relatos desde os primórdios do Barasil Colônia, no século XVI, e que chega até o século XXI em uma comunidade devastada pelos efeitos de uma tragédia ambiental – a exemplo do rompimento da barragem de Fundão, em Mariana, em novembro de 2015.

É neste vilarejo que um agricultor se depara com a mitológica criatura em sua fazenda, onde não chega mais sequer uma gota d’água, ao mesmo tempo em que um pastor ensandecido passa a controlar uma massa de fiéis convertidos em zumbis, num crescendo de insanidade que só pode terminar em tragédia. Em paralelo, a história mostra antigas aparições do Ipupiara, seja antes ou durante a ocupação portuguesa do que viria a se tornar o Brasil.

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Além da narrativa, a arte em preto e branco de Marcel Bartholo ajuda a prender o leitor. É um traço bruto, robusto, sem se preocupar com o realismo fotográfico, quase caricatural, mas que faz a história ganhar vida e agilidade com os closes e enquadramentos que tornam “Lama” algo cinematográfico em sua essência. Para os interessados, o Instagram do desenhista Marcel Bartholo é @marcelbartholoideaboa, e a Carniça Quadrinhos também tem página no Facebook.

KÁROS, de Gabriel Calfa e Erik Souza

Das três HQs, a graphic novel de Gabriel Calfa (roteiro, com Marcus Leopoldino responsável pelos diálogos e recordatórios) e Erik Souza (desenhos) é que tem apenas um dedo mindinho de um dos pés na realidade. A partir da palavra grega “Káros”, que significa “sono profundo, estupor, vertigem”, acompanhamos uma história que mistura mitologia, devaneios, o mundo real, elementos oníricos, em que nem tudo é como imaginamos ou percebemos.

A personagem principal, Sara, está presa em um reino fantástico há mais tempo do que consegue lembrar, tendo que enfrentar monstros de pedra, leões, labirintos, para chegar até a Ilha de Aldebaran, onde terá que enfrentar algo que lembra um Minotauro, sempre acompanhada pelo pássaro Ariadne. No meio do percurso, porém, lembranças do passado e flashes do mundo real confundem ainda mais a cabeça da protagonista, que tem uma missão que ela mesma não compreende em sua totalidade.

Toda a história, porém, perderia muito de seu impacto se não tivesse um artista com a qualidade de Erik Souza, que com um traço fino e elegante entrega cenários deslumbrantes, quase irreais ao explorar os limites da imaginação. A passagem de Sara pelo labirinto e a chegada à Ilha de Aldebaran são bons exemplos do trabalho excepcional de Erik.

“Káros” foi lançada pela Risco HQs Independentes, que está no Instagram com o perfil @riscohq.

Júlio Black

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