Balde meio cheio


Por Renan Ribeiro

03/05/2019 às 21h17


Algum problema na rede elétrica fez com que faltasse luz lá em casa. Esse tipo de coisa que só acontece quando você está tão atrasado que tem de tomar uma decisão rápida e eficiente. Aquele famoso se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. Rua sem saída. Precisava tomar banho para vir para a redação.

Poderia tomar um banho frio, sem qualquer problema, mas se a energia voltasse durante o banho, o resultado poderia ser chuveiro queimado, gerando mais um pequeno transtorno desnecessário. O jeito, então, foi recorrer ao bom e velho banho de caneco. Coloquei a água para ferver e, enquanto esperava, fui arrumar outras coisas. Sem energia, o celular ficou por carregar, dando seus últimos sinais de bateria. O rádio que sempre ajuda a cabeça a arejar emudeceu. Também não dava para adiantar as mensagens que precisava mandar pelo computador, já que o modem que distribui a internet também estava desligado.

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Finalmente a água ferveu. Completei o balde, temperei a água. Lembrei das vezes que tive que recorrer a esse tipo de banho quando criança, na época era divertido, fazia brincando. Mas agora eu não tinha tempo. Não vou dizer que foi ruim, também não foi tão bom assim. Senti falta da água morna caindo do alto, vindo em cascata pelo corpo. Aquela sensação familiar e boa de se sentir limpo. Quando o chuveiro funciona, o banho fica mais rápido.
Já o caneco é um convite para um banho mais demorado. Ensaboa tudo primeiro, enxagua tudo depois. Mas na impossibilidade de curtir o momento como ele merece, apesar dos pesares, aquela sensação de limpeza agradável, que só um bom banho é capaz de proporcionar estava ali. Tudo certo!

Estamos tão acostumados com as várias tecnologias com as quais lidamos o tempo todo que vamos nos esquecendo de como as coisas funcionavam antes. Ou como as fazíamos algum tempo atrás. Nós nos deixamos ser abraçados facilmente por elas. Quando por um acaso elas faltam, ficamos completamente vendidos. O que era conforto passa a ser trivial, e ficar sem o que faz parte da rotina é sempre mais difícil.

É aí que a coisa toda aperta. Como diz a minha mãe: “acostumar-se com o que é bom é muito fácil. Difícil é perder o que tem e ter que se virar com o que sobra.” O banho de caneco não foi nenhum martírio, pelo contrário, foi até um bocado nostálgico. Mas quantas vezes a falta desses confortos nos deixa mais frustrados, estressados e menos conectados com o que há em volta?

Dessa vez, não pude aproveitar a oportunidade para divagar o quanto gostaria. Assim que coloquei a chave na porta para sair, a energia voltou. Decidi não me revoltar, nem ficar com raiva. Também não me culparia se a sentisse. Às vezes, ficar sem um conforto é uma provocação necessária, para que a gente olhe para o outro lado e perceba alguma outra situação, ou algo que estamos deixando para trás, conforme tornamos nossa rotina cada vez mais automatizada. É quando o chuveiro não funciona, quando ele queima, quando o gás acaba no meio da preparação do almoço, que somos convidados a ver se o balde está meio cheio ou meio vazio. Se tiver um caneco, ninguém fica sem banho.

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