“Doolittle”: Este álbum foi para o céu
Oi, gente.
Minha ideia inicial era guardar “Doolittle”, o segundo álbum dos Pixies, para aquela série de discos clássicos que comemoram uma data redonda, tipo “20 apresentar 20 álbuns lançados em 1989”. Mas aí chegou a semana passada e o amigo Carlos Braz, da banda Iguanas, postou nas redes sociais sobre os 30 anos do lançamento do clássico indie (17 de abril no Reino Unido, 18 de abril nos States); e aí veio um jornalista e postou uma resenha que faz para a “Discoteca básica” da extinta revista “Bizz”; e aí foi a vez da DJ Rosa Martins publicar uma foto de sua cópia em vinil; e aí vários sites fizeram matérias especiais sobre a efeméride.
Aí eu pensei: “não tem jeito, vou ter que contar minha história também.” Porque “Doolittle” tem um lugar todo especial no meu coração.
Isto posto, senta que lá vem história. Assim como todo mundo que tinha a música como algo tão grande quanto a vida na era pré-internet, ter acesso às novidades do mundinho indie (nacionais ou gringas) era quase tão impossível quanto lamber o próprio cotovelo. Requisitos: morar nas grandes capitais, principalmente Rio e São Paulo; ter grana para viajar até o exterior para comprar os álbuns in loco, ou ter grana suficiente para adquirir o que chegava por aqui nas manhas da importação. Ou então conhecer alguém que tivesse grana, morasse nas capitais e aí gravar as salvadoras fitinhas cassete.
Pois eu não atendia a nenhum desses requisitos quando “Doolittle” foi lançado. Morava em Duque de Caxias, filho do proletariado, adolescente e com amigos igualmente adolescentes e tão sem grana quanto eu (proletário continuo sendo, e amigos que viajam para o exterior ou compravam discos importados só fui ter anos depois, quando lancei âncora em Volta Redonda).
Daí que o normal era ler sobre várias bandas sensacionais na “Bizz” e sonhar com o dia que conseguiria ouvir todas essas paradas – o que até melhorou com a chegada da MTV, em 20 de outubro de 1990, mas aí mudei para VR dois meses depois e lá não pegava a Music Television, não tinha dinheiro, ainda não tinha amigos, só restava a vontade e alguns poucos cruzeiros (cruzeiros novos?) para um álbum ou outro. E de vinil.
Foi lendo a “Bizz” que descobri o Pixies e “Doolittle”, incensado como um dos melhores álbuns de 1989 e com aquela capa linda, mas tão linda, que era uma obra de arte típica da gravadora britânica 4AD. Foram anos sem saber se o lance era essa Coca-Cola toda, mas sabe como é: disco de artista independente para encontrar em cidade do interior é praticamente tão impossível quanto lamber o próprio cotovelo, e faltava a grana, o amigo com algum dinheiro…
Porém, contudo, todavia e demais entretantos, eis que o jogo mudou, caro leitor. Demorou, mas mudou. O Sider Shopping, quem diria, tinha no térreo uma loja de discos, a Studio 13, e o que encontro num dia sem pretensões maiores? “Doolittle”, o álbum dos Pixies. Escondidinho ali na letra “P”, entre outros discos que deixaram de existir quando dei de cara com o macaquinho naquela capa maravilhosa. Não deu outra: o jovem de 19 anos, já não mais adolescente para efeitos da lei, não poderia viver sem o disco de uma banda que ele jamais tinha ouvido, mas que todos diziam ser a melhor coisa desde sei lá o quê.
O detalhe é que faltava o principal: dinheiro. Mas não desistimos, pois na época havia aquele porto seguro ao qual – na visão de um teenager em estágios finais – podíamos recorrer em momento de extrema necessidade: vó Neném e vô Joaquim, a dupla que fazia os melhores biscoitos de polvilho e pastéis de carne/queijo do universo. Pois foi ao meu avô Joaquim que pedi emprestado os cruzeiros (novos?) necessários para comprar o disco, dando algum motivo nada a ver para o empréstimo que pagaria depois (se eu paguei, não lembro, provavelmente ficou para a posteridade).
O dia em que comprei o álbum está marcado na sua contracapa: 20 de setembro de 1993. Sim, mais de quatro anos depois de ter chegado às lojas do mundo civilizado. Acho que nunca te agradeci da forma apropriada pelo dinheiro emprestado quando ainda era vivo, vô Joaquim, mas saiba que tem minha gratidão eterna por ter me dado, mesmo sem saber, um dos presentes mais importantes que já ganhei. Afinal, a primeira vez em que botei “Doolittle” para rodar em pouco mais de 33 rotações por minuto foi uma epifania musical.
Hoje, macaco velho que sou, é fácil analisar o álbum depois de tantas audições, com sua mistura de indie rock em sua mais pura essência e uma excelência pop que influenciou profundamente o “Nevermind” do Nirvana – que por essas coisas da vida já tinha ouvido dezenas de vezes. Ou detalhar as letras sobre surrealismo, religião, alusões à Bíblia, sexo, perversões, latinidade, prostitutas, morte.
Naquele momento, porém, nada disso importava. Ouvir “Debaser”, a faixa que abre o álbum, foi totalmente diferente de tudo que conhecia até então, com as guitarras emoldurando os gritos de Black Francis, o vocalista. “Tame”, a faixa seguinte, manteve a surpresa ao revezar os sussurros psicóticos de Francis – apoiados pelo baixo de Kim Deal – com os urros dementes do frontman do Pixies, agora acompanhado pela guitarra de Joey Santiago.
Na sequência, a mistura perfeita de indie rock e pop de “Wave of mutilation”, a estranheza viciante de “I Bleed” e “Here comes your man”, a canção pop definitiva do quarteto de Boston – composta por Black Francis na adolescência. Para fechar o lado A, outra esquisita e perfeitinha (“Dead”) e o clássico “Monkey gone to heaven”, explicando que “Se o Homem é Cinco / Então o Diabo é Seis / E se o Diabo é Seis, então Deus é Sete / Este macaco foi para o céu”.
O lado B começa com duas rapidinhas, com “Mr. Grieves” sendo a representação da morte e “Crackty Jones” relembrando um colega de quarto durante o intercâmbio de Black Francis em Porto Rico. Logo depois vinha a romântica/safadinha “La la love you”, cantada pelo baterista David Lovering; o encontro com uma prostituta em “Hey”; e o encerramento com “Gouge way”, que fazia uma nova leitura da história de Sansão e Dalila – da mesma forma que “Dead” era uma alusão à história de Davi e Bate-Seba.
Posso afirmar que minha vida musical pode ser dividida em um “antes e depois de ‘Doolittle'”, mesmo que “Nevermind” já tivesse trocado nossa chave mental quando o assunto é música. As 15 faixas do álbum mostraram algo totalmente novo, e que a partir daquele dia tinha certeza que faria parte da minha vida para sempre. Numa época de tão poucos bons discos para ouvir, o segundo trabalho dos Pixies foi companhia frequente durante bons anos, ouvido sempre que possível no volume máximo do 3 em 1 da Gradiente que me acompanhou até o dia em que eu e A Leitora Mais Crítica da Coluna demos o melhor salto no escuro da minha vida. E que foi o terror da vizinhança no bairro Sessenta toda vez que Black Francis berrava “Tame!!! Tame!!! Taaaaaaaame!!!”.
Vida longa e próspera. E obrigado pelos peixes.