Os biscoitos de Alfredo: Com açúcar, com afeto e com esforço

Receita saborosa: a trajetória do biscoiteiro Alfredo, há 28 anos no mesmo ponto no centro da cidade


Por Mauro Morais

19/04/2019 às 16h45- Atualizada 20/04/2019 às 16h03

Alfredo nasceu em Cataguases, passou parte da juventude no Rio de Janeiro e estabeleceu-se em Juiz de Fora, onde sempre trabalhou com o comércio. (Foto: Fernando Priamo)

“Me vê 100 gramas desse biscoito”, pede um, apontando para o amanteigado com goiabada. “Me vê desse aqui, moço”, pede outro, com uma criança do lado e os olhinhos brilhando. “Bom dia, seu Alfredo”, fala a mulher enquanto passa pela barraca na esquina da Avenida Itamar Franco com as ruas Espírito Santo e Batista de Oliveira. “Oi, seu Alfredo”, acena, ainda, outro. O homem por trás do balcão recheado de pequenos biscoitos conversa com um, fala de futebol com o outro, pergunta pela família a outra. Alfredo Gomes Neto segue trabalhando há 28 anos no mesmo lugar. Aos 73 anos, 42 deles vivendo em Juiz de Fora, o senhor de cabelos grisalhos, pele morena e um superlativo bom humor tornou-se parte da paisagem em um dos principais cruzamentos da cidade.

Os biscoitos, no passado produzidos por ele mesmo, hoje são comprados de outras fábricas. Há alguns anos, Alfredo precisou passar por uma cirurgia no coração e fez mudanças na vida. Trabalhar, contudo, permaneceu como regra. “Só não parei porque não posso e vivo um momento muito difícil. Até pouco tempo ainda tinha venda. Hoje não vendo tanto mais. E comecei a pagar um plano de saúde para mim e para minha mulher na época em que tinha a lanchonete e ganhava bem mais. Depois fomos para a padaria, e ainda dava para pagar. Hoje ele é muito caro”, reclama Alfredo, que chega por volta das 6h30 no local, descarrega a banca que leva e traz no carro. Retorna para a casa, um apartamento no Cascatinha onde vive com a esposa, perto das 16h.

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Mais da metade dos dias, Alfredo passa rodeado por biscoitos. Aos fins de semana, quando está disposto, faz a feira de Santa Luzia e da Avenida Brasil. O convívio é tanto que os biscoitos já não lhe apetecem. “Já percebeu: o que você tem, você não quer! É igual lá na roça: o pomar apodrecia. Hoje que não tenho, se vou na granja de um amigo quero comer a fruta no pé. É a mesma coisa aqui: se eu largar isso aqui, vou querer comer”, reflete ele, que costuma lanchar, ao anoitecer, café e um biscoito integral; amanteigado, não.

Ingredientes

“O aperto”, diz Alfredo, “foi tão grande que me ensinou a trabalhar e conviver com o ser humano, que é muito difícil de conviver.” Nascido em Cataguases, onde viveu até os 18, o homem era um dos 23 filhos de um casal de produtores rurais, que “sem leitura nem nada”, viviam, trabalhavam e moravam na Fazenda do Turiaçu. “Era uma vida maravilhosa”, comenta ele, que perdeu as contas do número de sobrinhos que tem. “Eu e meus irmãos somos todos amigos, mas se eu for na casa deles, está bom, se não for, também está bom”, explica, contando de uma tia, irmã do pai, que teve 31 filhos. Alfredo, porém, só teve duas filhas, que lhe deram quatro netos, frutos de um casamento que no próximo ano completa meio século de história. A vida que escolheu ter era bem diferente da vivida entre gados e pastos. “Lembro que a gente via o dia amanhecer agarrado no cabo da enxada e via o dia anoitecer agarrado no cabo da enxada. Nunca vi miséria na vida. Sempre tivemos muita fartura. Meu pai matava o porco antes da hora para as galinhas não comer, porque os porcos engordavam tanto, que quando encostavam na madeira, a pele rachava e as galinhas começavam a bicar o toucinho. Aí meu pai matava o porco. Leite lá em casa era colocado num tambor, com milho de molho dentro. A gente pegava um varal de frango e vinha para a cidade e, quando queria ir embora, podia trocar por um saco de pão e ir embora. Era muita fartura”, recorda-se ele, que, como os pais, pouco estudou. “Para ir para a escolinha eram seis horas a pé. Como a gente ia estudar se precisava de ajudar no trabalho?”, questiona ele, que diz ter aprendido, contudo, a se esforçar. “O mundo ensina a viver e a vencer.”

Alfredo recorda a infância: “A gente via o dia amanhecer agarrado no cabo da enxada e via o dia anoitecer agarrado no cabo da enxada. Nunca vi miséria na vida. Sempre tivemos muita fartura” (Foto: Fernando Priamo)

Modo de fazer

Um dia, Alfredo pediu ao pai o adiantamento do dinheiro da semana, trocou a roupa, juntou os pertences numa bolsa e pegou um ônibus rumo ao Rio de Janeiro, a fim de trabalhar numa obra no Méier. “Minha mão era calejada pelo cabo da enxada. Chegando lá, eu não sabia sequer o que era uma bisnaga. Eu conhecia salame, mas não sabia que era mortadela. Fui aprendendo. Numa lata de tinta eu colocava a água para ferver, despejava o pó de café e colocava numa fogueira que eu construía com os paus das obras. Aquilo fervia e eu esperava assentar o pó no fundo para eu tomar”, rememora. Adolescente, ele morava no próprio trabalho, onde conheceu a escassez. O almoço, conta, era difícil comer. “Levei uma vida de cão no Rio”, diz o homem, que com um “pé de meia” voltou para Cataguases, onde se casou com uma funcionária da famosa Companhia Industrial Cataguases. Como na roça ele já dirigia trator e máquinas de arar, e com a carteira de habilitação que conseguiu tirar no Rio de Janeiro, Alfredo foi empregado como motorista numa empresa de móveis, cuja fábrica ficava em Além Paraíba. “Rodei a região toda fazendo entregas, em Leopoldina, Miraí, Astolfo Dutra, Ubá, Dona Euzébia, até em Espera Feliz eu ia”, lembra. Anos depois, abandonou o caminhão e foi, mais uma vez, buscar uma oportunidade no Rio de Janeiro, onde conheceu um português, dono de uma fábrica de biscoitos. Naquele momento, passou a vender os produtos em feiras. E de lá transferiu-se para Juiz de Fora.

Degustação

Com outros três amigos, Alfredo montou uma lanchonete na Rua Halfeld. O negócio não deu certo, e eles decidiram investir numa padaria no Alto dos Passos. “Trabalhávamos no vermelho. Foi, então, que compramos um lote em São Pedro, fizemos um galpão e montamos uma fábrica de biscoitos”, conta. Alfredo procurava um ponto para vender os produtos. E um dos donos da fábrica de macarrões que funcionava na esquina das ruas Batista de Oliveira e Espírito Santo com a Avenida Itamar Franco (à época, Independência) era cliente fiel da padaria do Alto dos Passos, daqueles que só comiam os pães quentinhos. “Aqui ele não aceitava que ninguém montasse nada, barraca nenhuma, no passeio. Conversei com ele e consegui. E ele falava assim para mim: ‘Quando alguém te perguntar onde é o ponto, diz que é ao lado da fábrica de macarrões’. O tempo foi passando até o dia em que ele falou: ‘Alfredo, você vai falar agora que a barraquinha de biscoitos é onde funcionava a fábrica Saggioro!'”, lembra ele, regular no local pelo qual paga para estar. Hoje, porém, Alfredo apenas vende biscoitos. Parou de fabricar quando, há alguns anos, submeteu-se a uma delicada cirurgia no coração. Ironia do destino, a pequena indústria da qual fez parte prosperou e gerou diferentes marcas, algumas ainda de parentes. “Na família todo mundo é biscoiteiro”, brinca.

De trabalhador rural a operário na construção civil, seu Alfredo já foi motorista e também empresário. Há 28 anos é comerciante de biscoitos. (Foto: Fernando Priamo)

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