O barítono


Por Wendell Guiducci

16/04/2019 às 07h15

A voz dele ressoava pela Rua Attilio Pastorini, alta, potente, cristalina. Eu descia a calçada escangalhada carregando uma porção de uvas e uma bandeja de morangos, meus olhos buscando o rastro que os ouvidos apanhavam. É o caminhoneiro cantando? Tão forte, da boleia? Ou alguém das janelas envidraçadas?

Um Corsa rebaixado entra na rua arrastando sua barriga férrea, estilhaçando a melodia que se recompõe tão logo ele dobra a esquina rumo ao diabo que lhe carregue.

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Lá adiante, na interseção com a Avenida Pedro Henrique Krambeck, desvela-se o misterioso barítono: um catador de sucatas empurrando sua carroça, os pés metidos em grossas botas de operário, a roupa molhada de garoa-suor, louvando com um hino o deus que o colocou ali, de pé, musical, determinado, vivo.

Passo por ele rumo ao meu carro, estacionado alguns metros adiante. Entro, abro as janelas e silencio o rádio, de modo que possa continuar ouvindo a cantoria do catador. Ele passa por mim e me cumprimenta, bom dia, eu arranco e respondo, bom dia, e ele ô chefe, tem um trocado pra eu tomar um café, eu encosto. Olho pelo retrovisor, ele vem ressabiado, achei que o senhor ia me xingar igual um outro ali atrás, vai morrer em outro lugar, morador de rua.

“Vai morrer em outro lugar.”

Eu entrego a ele um trocado, sua voz é muito bonita pra cantar, digo, e ele, eu sou cantor, eu canto na igreja, sou evangélico, e eu dou os parabéns, desejo sorte – e não sei bem o que seria sorte pra ele, encontrar boas sucatas ao longo da Pedro Henrique Krambeck até o Centro de Futebol Zico, servir-se dos restos que descartamos na Cidade Alta, ou tomar um bom café, agradar o pessoal do culto com sua voz, esse insuspeito Tito Gobbi de vestes rotas – e sigo minha viagem até em casa.

O rádio ainda desligado.

Um dos couverts mais bem pagos da minha vida.

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