O galo da Passarela


Por Wendell Guiducci

02/04/2019 às 07h00- Atualizada 02/04/2019 às 07h35

Não pense o apressado leitor, baseado no título da narrativa, que esta será uma crônica sobre um galo-manequim, ou um galo-capa-de-revista, um galo-modelete que desfila com graça e desenvoltura pelas passarelas do mundo, perseguido por paparazzis e digno dos mais diversos mimos e regalos, os quais ostenta sorridente em sua bombadíssima conta no Instagram. Ora, não é porque converso com cães no Parque Halfeld que atingi tal nível de desatino ficcional.

Não, estimado leitor, o galo do título existe de fato e é morador conhecido do Bairro São Mateus, este pequeno ducado que desenvolveu-se às margens do hoje subterrâneo Córrego Independência. Todos que habitam as cercanias da Rua Antônio Passarela ou por ali passam regularmente conhecem seu poderio vocal. Canta como se não houvesse amanhã, um cocoricó que pode surpreender o passante a qualquer hora do dia ou da noite, não importa o mês ou a estação, se chove ou faz sol. É um canto estridente, de rachar cristais, que atravessa o metal dos carros e o concreto dos edifícios, invade as orelhas e faz tremer os tímpanos. “Por que não se cala?”, questionam os vizinhos como o rei Juan Carlos ao finado Hugo Chávez.

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Eu, que não sou versado nessa coisa galiforme, declaro-me incapaz de dizer se seria um galo garnisé ou um galo índio, um pescoço pelado ou um jersey gigante. Qual seja, é certo que, entre os galos, deve ser considerado tenor. E dotado de privilegiado aparato vocal, vide que, ainda que cante por horas, jamais aparenta rouquidão. #aiqueinveja, hashtegueia o cantor em mim. Problema maior nem é o canto do bem-dotado. É a total desorientação: diferente do célebre galo de Rubem Alves, que acreditava fazer o sol nascer com seu cocoricó, o galo da Passarela canta a qualquer momento, seja de manhã, de tarde ou de noite, madrugada adentro e o escambau de Madureira.

Criança pequena lá em Ubá, eu tinha um medo danado se o galo do vizinho cantasse de madrugada. “É prenúncio de que alguém vai morrer”, diziam. É que em cidade pequena a comunidade galinácea tende a levar muito a sério esse negócio da tradição, como também o dogma de que pra cada coisa há sua hora certa. E hora de galo cantar é na alvorada, prontacabou. Agora vem esse galo metido a besta, achando que Juiz de Fora é cidade grande e trina seus cocoricós a plenos pulmões ao tempo que bem entende. É o que tenho pensado.

Mas talvez eu esteja sendo duro demais com o Galo da Passarela – já até escrevo seu nome com maiúscula em sinal de respeito. Também não sou versado na psicanálise galinácea, de Lacan nada entendo, mas arrisco dizer que talvez ele ande tão somente um pouco neurótico com essas coisas da modernidade. O som dos automóveis subindo. O escapamento das motocicletas. A criançada gritando enquanto desce a rua rumo à Escola Fernando Lobo. Os televisores e os rádios e os telefones celulares borrando o tempo e o espaço com anúncios, distrações e música ruim. Talvez não devêssemos então pedir ao Galo da Passarela que se cale. Talvez devêssemos apenas ouvi-lo. Pode ser que seja ele a pedir, lá do fundo de sua alma ancestral de bicho, algum silêncio a nós.

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