Manifesto contra a paz


Por Júlia Pessôa

10/03/2019 às 07h00

“É menina!”. Mal nascemos – as que têm o privilégio de vir a este mundo em um ambiente com um mínimo de segurança – e o fardo que carregaremos a vida inteira vem como um carimbo, não raramente acompanhado por orelhas furadas nas primeiras horas de vida e vestimentas cor-de-rosa que demarcarão, ainda que não saibamos ainda, a maioria esmagadora de toda publicidade, produto e identidade visual destinada a nós – de novo, às que nesse tempo curto de Terra têm a regalia de serem consideradas pela cadeia de consumo. Uma porcentagem gigante e vergonhosa das mulheres jamais se preocupará com estereótipos ligados a cores. Elas precisam, antes, se preocupar em se manterem vivas, saudáveis e sãs – frequentemente tendo que fazer isso por outros sobre os quais têm responsabilidade, por opção ou falta dela.

Ao passo que crescemos, vamos sendo embebidas de ódio. Pelos nossos corpos, nunca bons o suficiente sabe-se lá para quê, uma ironia de mau gosto já que são eles que nos mantêm vivas, saudáveis e em funcionamento, inclusive absorvendo todas as opressões físicas, morais, psicológicas, emocionais e todas as inúmeras outras que vivemos, em maior ou menor grau, de acordo com nossas trajetórias individuais. Ódio pelo fato de sermos mulheres quando passamos a entender que isso delimita as oportunidades a que creem que temos direito a ter acesso, os comportamentos que deveríamos ter e os papéis restritos que deveríamos ocupar. Ódio por outras mulheres, porque somos criadas para acreditar que estamos em eterna competição, e durante muito tempo acreditamos nessa lorota leviana (E eu sinceramente espero que todas nós possamos descobrir que não passa de mais um golpe para nos desunir e enfraquecer). Ódio porque parece, para muitas mais do que para outras (novamente), que a trajetória é tão longa e tão árdua que não vale a pena continuar caminhando. Ódio porque tem muito de solidão, de cansaço, de descrédito, de violência, de desmerecimento, de sobrecarga, de assédio, de abuso, de tristeza, de aprisionamento e de tanta perda no “tornar-se mulher” cotidiano. Ódio por nos matarem.

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Só que uma vez que a gente descobre o amor, não tem mais volta. E não digo o amor romântico, que nos pinta como princesas em apuros que precisam ser salvas. Precisamos é extinguir as realidades das quais precisamos nos resgatar – a nós próprias. Também não o amor pintado de uma sororidade em que estamos em ciranda umas com as outras. Não somos obrigadas a gostar de qualquer pessoa, inclusive outras mulheres, e o contrário dessa afirmação só tira a força da premissa de que é fundamental que estejamos juntas na batalha por direitos, respeito e igualdade, seja como for. Tampouco o amor do cuidado pelos outros, do dito “instinto materno”, da abnegação de si em função do outro. Falo de um amor que emancipa, um amor que vem da certeza de que não devemos aceitar migalhas de afeto, reconhecimento e autonomia (em todos os sentidos). Um amor que faz com que a gente seja incansável pra lutar por isso, e que reconheça, ao mesmo tempo, que nos cansamos sim, e que tudo bem. Um amor que nos permita errar, repensar e recomeçar. Um amor que não nos entende como metade de qualquer coisa ou qualquer pessoa, somos inteiras. Um amor que grita, mesmo quando tudo quer fazer com que a gente silencie. Um amor que é também – e principalmente – do embate, porque paz pra poucos é tormenta para muitos e, principalmente, para muitas. Que a gente nunca se conforme, ou vá, cada uma em seu tempo, se conformando cada vez menos com essa paz.

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