As vias da web: entre o Street View e as ruas reais de JF
Já reparou a sua rua na internet? Sem seguir o dinamismo da área urbana, Google Street View processa a memória recente de Juiz de Fora; nas periferias, desatualização é cinco vezes maior do que na região central
Basta um passo e voltamos cinco anos no tempo. Se o fenômeno ainda não é possível na vida real, ao menos na web é absolutamente comum, num passeio pelas ruas de Juiz de Fora no Google Street View, recurso virtual com panorama de 360º horizontais e 290° verticais. Saindo da Ladeira Alexandre Leonel, no Cascatinha, e subindo a Alameda Pássaros da Polônia, já no Estrela Sul, contam-se cerca de 180 passos com o cenário registrado pelas câmeras da gigante da tecnologia em dezembro de 2016. Adiante, em quase toda a totalidade do bairro onde está localizada a Tribuna de Minas, a paisagem é outra, a de 2011, quando foi feita a primeira captura de imagens para o Google Street View em Juiz de Fora, quatro anos após o Google lançar a ferramenta. Mais dinâmica que a própria web, a cidade deu conta de transformar radicalmente o horizonte, que nos grandes lotes de pastos viu irromperem prédios e mais prédios. A realidade de desatualização estende-se por toda a periferia, com áreas fotografadas uma única vez, há quase oito anos. Mesmo áreas com grande circulação, como a Avenida Presidente Juscelino Kubitschek, na Zona Norte, faz presença no espaço virtual com uma face já antiga.
Em contrapartida, a região central da cidade aparece no Google Street View com registros realizados em dezembro de 2017, em sua ampla maioria. Pontos como o cruzamento das avenidas Itamar Franco e Rio Branco possuem até seis imagens distintas, realizadas em 2011, 2015, 2016 e 2017. Está tudo arquivado, basta clicar num símbolo de relógio no canto superior esquerdo da página, que permite a viagem no tempo. O mecanismo foi criado após um forte terremoto devastar a costa do Japão em 2011, modificando drasticamente a paisagem. A memória das ruas e casas do local em ruínas manteve-se no espaço virtual. Em Juiz de Fora, outros vestígios do passado também podem ser visitados desde que o Google iniciou o processo de reprodução digital do município. Na própria Itamar Franco, na esquina com a Rua Santo Antônio, permanece no Street View um casarão com elementos modernistas que, demolido, hoje dá lugar a uma drogaria.
A (falsa) sensação do estar
Complexo e altamente profissional, o sistema de registro de imagens panorâmicas das cidades é realizado pelo própria Google, em carros, mochilas (trekker), motos de neves, triciclos e robôs (trolley), ou por colaboradores, verificados pela multinacional. As imagens são geradas a partir da coleta de inúmeras fotografias, tudo combinado com sinais de sensores que calculam dados do GPS. As imagens são sobrepostas para gerar uma só, em 360º, que por sua vez ajudam a gerar os modelos em 3D. Uma avançada tecnologia permite a identificação de rostos e placas de carros, que logo são desfocados. Ainda assim, o site possui uma ferramenta para que a privacidade seja reivindicada pelo usuário em outros elementos e cenas. Um cronograma de novos registros é publicado no próprio site da corporação. Atualmente, 13 estados brasileiros estão sendo fotografados. Cambuí, Pouso Alegre, Pompeu, Andradas, Poços de Caldas, Luislândia e Lagoa Grande são as cidades mineiras onde, desde novembro, a Google investe na atualização do Street View. Juiz de Fora ainda não está na rota. Enquanto isso, o casarão no alto da Rua Antônio Carlos segue presente na web. Na vida real, tornou-se poeira.
De acordo com o pesquisador Evandro Nicolau, em sua tese intitulada “Desenhos da paisagem: percepção, memória e imaginação”, as imagens que se proliferam com os avanços tecnológicos ampliam as formas de ver e pensar as cidades. “Estas tecnologias estão centralizadas nas mãos de grandes corporações e estados, mas também acabam por possibilitar ações com grande potencial de produzir formas individuais de linguagem e expressão de modos diversos de ver o mundo, ou a cidade”, observa o educador em sua tese elaborada para o Programa Interunidades em Estética e História da Arte na Universidade de São Paulo. Segundo Nicolau, a Google com seu Street View é um exemplar de empresa que proporciona percepções mediadas do cotidiano da urbe.
“Trata-se de um aspecto de mapeamento e vigilância contemporânea que se revela também como uma potencial forma de controle da informação e da vida digital. Em outra instância, existe a possibilidade de viajarmos digitalmente, de selecionar imagens de lugares e de ver o mundo representado de modo muito amplificado. Com essas ferramentas podemos criar percursos, desenhos digitais sobre as cidades, que traçam uma linha em sobrevoo na superfície do mapa e que depois pode se converter em imersão pelo caminho destacado. Esses percursos podem então se constituir em percepção, em uma percepção que é mediada pela tecnologia, que acaba por ser, mais ou menos, apropriada pelas populações, de acordo com o grau de conectividade de cada país. Esta cartografia e vigilância têm um alto grau de participação voluntária, ou seja, rastrear e ser rastreado faz parte do jogo tecnológico, da exibição das imagens, dos percursos e da sensibilidade e emoções expostas no campo da representação digital”, defende o pesquisador em seu trabalho.
Memória minha e dos outros
Moroso e burocrático, o processo de tombamento é um dos principais mecanismos de proteção e preservação da memória das cidades. Não dá conta, no entanto, da velocidade com que as mesmas se transformam. Basta observar o Bom Pastor, cenário com um dos maiores conjuntos de edificações modernistas de Juiz de Fora no passado, que hoje cede espaço para edifícios de estilo contemporâneo, em muito distinto da linguagem que se consolidou entre os anos 1930 e 1950 no Brasil. Ainda que tenha um recorte muito limitado do ontem, pouco a pouco o Google Street vai se tornando em um memorial que o próprio Poder Público não dá conta de tecer. Assustadoramente, as cidades são ágeis ao se transfigurarem.
Esta semana, Juiz de Fora assistiu ao tombamento da casa que faz a esquina das ruas Gilberto de Alencar e Marechal Deodoro, encerrando um dos mais longos processos da pasta. Aberto em 1997, o pedido de preservação do imóvel indicava a urgência da conservação de um casarão que, construído no início do século XX, em estilo eclético, sofreu tantas interferências que passou ao estilo neocolonial. Para o historiador Fabrício Fernandes, da Divisão de Patrimônio Cultural (Dipac) da Funalfa e representante da cadeira de patrimônio no Conselho Municipal de Cultura, o recurso do Google é um aliado para o pensamento da memória. No cotidiano do setor responsável pelas políticas públicas acerca do patrimônio cultural do município, o Street View, segundo Fernandes, é imprescindível. É nele que são feitas consultas anteriores às vistorias.
No Google Maps, serviço de pesquisa e visualização de mapas e imagens de satélite, estão cadastrados todos os mais de 180 bens imóveis tombados em Juiz de Fora. “Discutimos que seria muito interessante encontrarmos uma forma para disponibilizar isso ao público”, pontua o historiador, ressaltando que, atualmente, a cidade possui mais de mil imóveis inventariados, ferramenta que não tem o peso da proteção, listados no site da Prefeitura. “Eles não estão ordenados de forma convidativa. Imagino que muitos deles não existem mais, mas se estivessem georreferenciados, seriam mais interessante para que as pessoas observassem as mudanças na cidade”, destaca Fernandes.