Artistas lidam com indefinições relativas à Lei Murilo Mendes

Após dois anos sem o edital, juiz-foranos comentam sobre projetos que seguem paralisados ou que buscam alternativas para ser realizados


Por Júlio Black

20/01/2019 às 07h00

Gustavo Burla e Táscia Souza deixaram de apresentar dois projetos, e agora terão que privilegiar um deles caso o edital seja publicado em 2019 (Foto: Olavo Prazeres)

Em tempos de crise financeira aguda, em que governos nas mais diferentes esferas padecem com a falta de recursos e repasses, já se tornou clichê mais que surrado dizer que a cultura “é a primeira vítima”, posto que não seria uma prioridade do mesmo nível que a educação, saneamento, saúde, segurança. Mas é preciso ter sempre em mente que a cultura, a seu modo, ajuda a criar uma sociedade melhor, mais consciente, produz melhores cidadãos de maneiras que podemos dizer incontáveis.

Neste ponto, Juiz de Fora é uma cidade que sempre se destacou, e isso é coisa para mais de século, desde quando as tradicionais e milionárias famílias do século XIX já investiam na arte, basta ver o acervo preservado no parcialmente aberto Museu Mariano Procópio. É, ainda, cidade que durante o século XX produziu escritores, artistas plásticos, cantores e compositores, que chegou a ter o segundo maior desfile de carnaval do Brasil. Motivos mais que suficientes para que Juiz de Fora ganhasse, em 1994, a Lei Municipal Murilo Mendes de Incentivo à Cultura, que ajudou a fomentar a produção artística local a partir do financiamento de projetos aprovados por meio de edital para livros, discos e CDs, DVDs, filmes, espetáculos teatrais, de dança, gravação de videoclipes, entre tantas outras possibilidades.

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A cada ano, dezenas de projetos eram aprovados e realizados, garantindo ao público acesso a produções locais, pagas ou gratuitas – neste último caso, certamente garantidos para quem procurasse a sede da Funalfa, em frente ao Parque Halfeld, onde os artistas precisam deixar parte do produto final (no caso de livros, CDs, DVDs etc) que se tornam realidade graças à Lei Murilo Mendes. No início de 2018, a Funalfa anunciou ter distribuído mais de 11 mil produtos (7.560 livros, 3.102 CDs e 290 DVDs) no ano anterior, conforme reportagem publicada pela Tribuna em janeiro do ano passado.

Adiamentos

Agora, porém, a situação é preocupante para a classe artística e, por consequência, para o público em geral. Pela quinta vez em sua história, a Funalfa não divulgou o edital para a Murilo Mendes. Depois dos cancelamentos em 1998, 2000 e 2008, a fundação cancelou o edital de 2017 com a ideia de realizar o do ano seguinte no primeiro semestre, para diminuir o hiato. Havia, inclusive, a intenção de que isso ocorresse em março, como declarou na ocasião o então superintendente Rômulo Veiga, justificando o cancelamento por questões financeiras e de mudanças que se faziam necessárias na lei.

O tempo passou, março se foi, e em maio o prefeito Antônio Almas assinou o decreto da Lei, com algumas mudanças mas sem data para o edital. Em outubro, a Funalfa garantiu o edital para dezembro; no último mês do ano, inclusive, logo depois do Corredor Cultural, o atual superintendente da Funalfa, Zezinho Mancini, declarou que a expectativa era de que o edital saísse até o final de dezembro. Mas 2018 acabou, e pela primeira vez a Lei Murilo Mendes deixou de ter edital por dois anos consecutivos. Procurado pela reportagem da Tribuna esta semana, Zezinho Mancini informou que Funalfa está finalizando negociações em torno da Lei e que em breve terá um posicionamento.

Com todas essas indefinições, a pergunta para muitos artistas e pesquisadores é: o que fazer? Esperar, mais um ano, pelo edital da Lei Murilo Mendes? Ou não esperar e pagar do próprio bolso? Buscar patrocínio? Partir para o financiamento coletivo (crowdfunding)? Tentar outras leis de incentivo? O certo, porém, é que diversos artistas estão com projetos à espera do edital, alguns deles correndo o risco de perder a chance de celebrar datas históricas, ou acumulando projetos que poderiam ter rendido dois produtos para 2018 e 2019. Por conta disso, a Tribuna procurou alguns artistas da cidade para saber como eles estão lidando com a ausência da Lei Murilo Mendes. Quais projetos estão à espera, quais podem perder o “timing” histórico, quais seriam importantes para entender o atual momento que vivemos e quais vão ganhar vida por outros meios.

Centenário sem tamborins, cavaquinhos…

Juiz de Fora tem uma série de artistas que, a despeito de sua importância cultural e histórica, deixaram poucos registros de suas obras, como é o caso do cantor, músico e compositor Djalma de Carvalho, que completaria 100 anos de nascimento no próximo 16 de dezembro. O músico, produtor e pesquisador Márcio Gomes tem o projeto de produzir um CD com músicas de Djalma que, em sua maioria, nunca foram gravadas e das quais conseguiu recuperar partituras, letras, em um trabalho incansável para conseguir, muitas vezes, descobrir quais letras foram escritas para determinada música. É um projeto que ele guarda desde 2015 para aproveitar o centenário do artista, mas teve o planejamento frustrado por conta das indefinições que cercam a Murilo Mendes.

“Esse projeto é importante para a história da cidade, pois o Djalma foi um dos fundadores da escola de samba Feliz Lembrança, que desfilou pela primeira vez em 1939, e seu principal compositor nessa primeira fase. Foi ainda uma figura muito importante na época de ouro do rádio, por volta da década de 1950, quando havia os programas de auditório. Produziu muita coisa nessa época, pois era um compositor profícuo, e ainda era o contrabaixista do conjunto regional da rádio PRB-3 comandada pelo Mozart Couto”, destaca Márcio Gomes, lembrando que Djalma era irmão de Nancy de Carvalho, a primeira porta-bandeira do carnaval juiz-forano, morta em 2017.

Márcio Gomes deixou para apresentar em 2018 o projeto ligado ao centenário de Djalma de Carvalho, e CD em homenagem corre risco de não ser lançado (Foto: Fernando Priamo)

Márcio conta que a ideia era aproveitar o edital de 2018 para apresentar o projeto, e com a verba fazer a produção e lançamento do CD do autor – ao lado de Juquita e B.O. – do clássico “Se eu fosse feliz” ainda este ano. “A maioria das músicas seria gravada pela primeira vez, sendo que muitas delas eram cantadas em desfiles da Feliz Lembrança, na rádio e em concursos”, destaca. “Continuo esperando pela Lei. Tudo que poderia fazer (a parte de pesquisa bibliográfica e de repertório, definir quem vai cantar no disco) já foi feito. Tenho 90% do material pronto para demonstração e a autorização da família para o projeto. Mas antes tarde do que nunca, se sair em 2020.”

A solução que vem pelo crowdfunding

Quem também está com vários projetos (“engatilhados ou guardados no meu arquivo mental”, como ele diz) que poderiam ter aproveitado os editais da Lei Murilo Mendes é o escritor Knorr, que já publicou diversos livros graças ao apoio do município à cultura. O atual hiato, porém, fez com que ele voltasse a recorrer ao crowdfunding (financiamento coletivo pela internet) para continuar publicando sua obra. O artista conseguiu no início do ano, por meio do Catarse, o valor necessário para produzir seu próximo livro, “Tongó”. “Senti uma necessidade extrema de colocá-lo pra fora o quanto antes, porque representa o fim de um ciclo na minha vida. Então resolvi esperar aquela confusão toda das eleições passar para ter o apoio das redes sociais, e lancei o projeto de publicação pelo Catarse. Não havia como esperar e correr o risco do edital ser adiado mais uma vez…”, diz. “Lancei o ‘desafio’ do ‘tudo ou nada’ em novembro. No final, correu tudo bem, mas notei que foi um pouco mais difícil que na minha outra tentativa, em 2017. Se tudo andar como o previsto lançarei o livro em março.”

Como não quer exaurir as possibilidades do crowdfunding, Knorr agora espera pelos futuros editais para apresentar seus outros projeto. “Assim como eu, acho que tem vários artistas sofrendo de uma certa ansiedade com relação a isso. Eu e alguns amigos de outros setores culturais começamos em 2017 a formatar algo multimídia, agregando música, poesia, teatro e artes plásticas. Com o adiamento constante, a ideia foi se tornando mais distante e já há alguns meses não falamos mais disso. Então a gente passa a desacreditar da publicação do edital”, lamenta.

Histórias a serem contadas

Knorr já teve diversos livros lançados com o apoio da Murilo Mendes, mas recorreu novamente ao crowdfunding para seu mais recente projeto (Foto: Fernando Priamo)

Outro projeto literário na expectativa do edital é uma publicação direcionada ao público infanto-juvenil que reúne contos de nada menos que dez mulheres negras de Juiz de Fora, incluindo profissões como professor, designer gráfico, fotógrafa, assistente social e técnico-administrativo da PM, em que elas relatam suas memórias da juventude. “É para mostrar como foi dolorida a nossa adolescência, por conta do racismo, e como nós nos tornamos mulheres negras empoderadas na vida adulta”, explica Vanessa Lourenço, que participa do projeto com Denise Nascimento, Flávia Nascimento, Marilda Simeão de Faria, Maria Consolação Lima, Elisângela Damasceno, Gilmara Santos, Selmara Castro, Helenice Lopes e Elaine Coelho. As ilustrações para a obra são de Paula Duarte e Martina Fantini.

Do grupo de escritoras, Vanessa é a única que já havia trabalhado em obras que foram aprovadas pela Murilo Mendes, sendo a produtora dos livros infanto-juvenis “Tronco a formar ponte sobre um rio”, de César Brandão, e “Água Grande”, de Lenir Vicente. “Estamos elaborando esse projeto há dois anos e tínhamos a expectativa de concorrer este ano no edital. É o nosso ‘plano A’, tendo em vista que não temos verba para financiar o livro. Mas se a lei não sair, estamos estudando a possibilidade de outras leis de fomento cultural. A perspectiva agora é correr atrás disso.”

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Projetos de mesma autoria, mas ‘concorrentes’

Formado por Gustavo Burla e Táscia Souza, o Projeto Hupokhondría teve um projeto aprovado pelo edital da Lei Murilo Mendes em 2016, que rendeu em 2017 o livro “99 receitas”, uma coletânea de textos dos primeiros cinco anos de trabalho da iniciativa. Porém, com o cancelamento do edital de 2017, um projeto para aquele ano que envolvia rádio e teatro foi adiado, e em 2018 foi a vez de um livro que, com o hiato de dois anos, será a prioridade da dupla caso um novo edital seja publicado. “Se houvesse periodicidade na Lei, os dois poderiam ter sido inscritos em momentos diferentes. Agora eles se tornam concorrentes, e com outros tantos desses três anos de vazio acumulado”, lamenta Gustavo Burla, que ressalta os motivos para esperar pela Murilo Mendes para tocar o barco. “Ambos são trabalhos realizados na cidade, por pessoas da cidade e que se pretendem ver circulando, claro, por outros lugares, mas queremos mostrar primeiro aqui o que fazemos. E não, não temos recursos financeiros próprios para realizá-los de forma independente.”

O Hupokhondría tem projetos em diferentes estágios, segundo Gustavo, da ideia à proposta pronta. “Precisamos escolher qual nossa prioridade em função da disponibilidade de trabalho da equipe e das propostas de financiamento encontradas. Diante da possibilidade de realização anual da Lei Murilo Mendes, montamos cronogramas de trabalho que acabaram frustrados pela ausência dos editais em dois anos seguidos. Agora, assim como ocorre com toda a cultura local, também precisamos nos adequar a essa ausência do poder público.”

Prejuízos para a produção local

Após dois anos sem o edital da Lei Murilo Mendes, os artistas procurados pela Tribuna veem o hiato como prejudicial ao fomento da produção cultural local, uma vez que se torna muito difícil realizar tantos projetos em um momento em que a crise econômica ainda se faz presente. “A Lei Murilo Mendes é a forma mais madura de incentivo cultural, mais democrática, menos burocrática e com repasse direto”, reconhece Gustavo Burla. “A ausência de um edital (indefinição é um eufemismo para a omissão que se arrasta desde 2017) deixa a cidade sem a quantidade de trabalhos que merece, o que ocorre porque Juiz de Fora conta com este incentivo e, sem ele, fica sem saber inscrever-se em outros editais, seja pelo excesso de burocracia ou pela incapacidade de captação posterior.”

De acordo com Burla, a Funalfa entende que algumas propostas carecem de profissionalismo. “Muitas vezes é um sujeito da comunidade que tem uma ideia fantástica para a comunidade, sabe realizar, sabe quanto custa, mas não sabe preencher a papelada. Ele precisa pagar um consultor para mostrar para a Funalfa o que ele precisa fazer? Sendo que, neste caso, ele sabe melhor que a própria Funalfa o que a comunidade precisa?”, questiona Burla. “A Lei funciona (ou funcionava, quando existia) e pequenos ajustes precisam sempre ser feitos para aprimorá-la e facilitar a vida das pessoas, porque fazer cultura neste país está difícil. Cortar a Lei ou dificultar os trabalhos dos proponentes só atrapalha o desenvolvimento da cultura local. Alguns setores buscam apoio na iniciativa privada, através de projetos ou patrocínios, e outros por meio de financiamento coletivo, o que é contar com o público duas vezes, quando, no cenário atual, é difícil tê-lo uma.”

Márcio Gomes volta a lembrar que havia idealizado a apresentação de três projetos para a Murilo Mendes. Em 2017, seria um CD com a obra do compositor Biné; para 2018, o já citado CD para ser lançado no centenário de Djalma de Carvalho; para este ano, seria escolhido o material de algum dos compositores de Juiz de Fora já falecidos, na sua missão de resgatar a memória musical da cidade. “Material para gerar produtos culturais não falta. Sei de gente como o Knorr, que tem muito material, assim como o pessoal da dança, cinema, gente muito criativa, voltada para fazer um produto com qualidade, e que deixou de lançar dois livros, produzir dois documentários, duas caravanas de palhaços. Se multiplicar a média de projetos aprovados vinculados a um edital, você tem pelo menos cem que deixaram de ser feitos.”

Debate empobrecido

Além da questão cultural, Vanessa Lourenço destaca as discussões de cunho social que deixam de ser vir à tona com o não lançamento de trabalhos como o do grupo do qual participa. “Tendo em vista a conjuntura atual, em que se fala tanto sobre a questão do racismo, em que nós temos muitas adolescentes negras em âmbito escolar, de comunidade, creio que essas histórias seriam muito significativas para as jovens, e não apenas juiz-foranas, e como o edital não saiu, isso tarda e até impossibilita que um projeto desses aconteça. É um produto que esse grupo considera muito importante, até pela pouca produção desse caráter em Juiz de Fora, direcionado à população e à juventude negra.”

Knorr, por sua vez, diz ter convivido pouco e transitado menos do que gostaria no meio cultural da cidade, mas afirma notar que, em linhas gerais, ficam todos inseguros e incertos quanto ao futuro de eventuais projetos. “Sei de casos de produção de CDs que se perderam, já que seriam para comemorar aniversário de um evento ou centenário de nascimento de algum compositor. E juntamente com esse artista, no caso de um CD, por exemplo, uma verdadeira corrente de designers, técnicos de som, músicos etc, acaba se rompendo e deixando de movimentar uma boa fatia do mercado de Juiz de Fora, que já não é grande com a Lei – e imagine sem ela, e ainda mais sem ela há dois anos. Esse ‘silêncio’ da Lei Murilo Mendes está quase por provocar um hiato na produção cultural da cidade”, alerta.

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