Foi bom pra cachorro


Por Wendell Guiducci

18/12/2018 às 07h00

Outro dia, enquanto assistia no Bar Cascatinha à final da Libertadores da América, entre River Plate e Boca Juniors, fui abordado por um leitor desse periódico à porta da referida bodega.

– Você é o Wendell -, interpelou.

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– Tenho sido, sim senhor.

– Sou leitor da sua coluna. Sinto falta das conversas com os animais.

– É verdade, andam ausentes.

– Outro dia até pensei em ir ao Parque Halfeld pra ver se encontrava aquele cachorro que você falou.

Antes que pudéssemos desenrolar o novelo da prosa, lances de emoção e botinadas platinas brandiram no pequeno televisor colocado acima da estufa onde fumegavam pedaços vistosos de bucho, torresmo e fígado acebolado, chamando atenção e interrompendo nosso colóquio.

Embora não tenha sido apresentado à sua graça, botequeiro leitor, devo dizer que sua observação me fez refletir sobre minha própria conduta no que se refere à sociabilidade com os animais circundantes – os ditos racionais e os ditos irracionais.

O bem-te-vi que me acorda às 6h cantando da cerca.

Zig, o viril pitbull do vizinho.

Margot, a gata-de-guarda da minha filha Júlia.

Luna, a acrobática felina da outra filha, Bia.

O pica-pau que volta e meia cavuca o tronco da aroeira moribunda.

O gavião que monta o cupim solitário no meio do terreno baldio, gárgula faminto de cobras e lagartos.

Sim, tenho mantido boas conversações com todos eles, estimado leitor sem nome.

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Tenho dificuldades, ultimamente, é de manter conversações com o animal da raça humana. Daí a preservação, em foro privado, de minhas confabulações com os que vêm abaixo na cadeia alimentar. Poderia, sim, compartilhá-las aqui, nas páginas desse tradicional diário que o senhor ora lê. Todavia, creio que apenas a bem poucos me faça entender a contento (as pessoas estão muito apegadas a esse negócio do “entender”). E, como o senhor bem sabe, silenciar, como navegar, também é preciso. Se impreciso, tanto melhor.

Sou, caríssimo leitor da locanda cascatinesca, um homem contemporâneo e disso não posso escapar. E como muito bem entenderam poetas, filósofos e surfistas, o verdadeiramente contemporâneo não coincide plenamente com seu tempo. Daí angustia-se diante da inexorável realidade de não poder viver aqueles dias nos quais ainda não era nascido, e de igualmente não poder experimentar os dias que virão depois que seus ossos já tiverem virado adubo.

(saiba: não passamos de bosta de boi cósmica)

Entre os trending topics e a boca aberta do vira-latas na pracinha, etílico colega, serei sempre pelo cão.

Entre a polêmica do dia e o pio do sabiá no joazeiro, serei pelo canto.

Entre o like e o arranhão da gata louca, serei cicatriz.

O resto, meu bodegueiro leitor do Bar Cascatinha, é mero algoritmo.

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