A pipa do vovô


Por Júlia Pessôa

18/11/2018 às 07h00- Atualizada 18/11/2018 às 15h18

Eu me lembro bem de uma piada bem besta de quando eu era criança. O dono de um papagaio que só sabia cantarolar “Silvio Santos vem aí, olê, olê, olá” atirou o bicho na privada, não aguentando mais o refrão. O pássaro, irritante que só, respondia, no mesmo ritmo “Se ferrou que eu sei nadar, olê, olê olá”. É bem como o próprio Silvio Santos age mesmo. Apesar de vir sendo exposto por seu machismo, seu racismo, sua LGBTTIfobia e diversos preconceitos, já há alguns anos, o senhor de quase NOVENTA ANOS (sim!) segue como se cantasse um sonoro “Se ferrou”, nadando de braçadas em seu privilégio de homem rico, idoso, branco, hétero e famoso, em águas de muita impunidade – ainda que mergulhe, com seus comentários, voluntariamente, na latrina.

É assédio dizer para uma mulher, a menos que seja uma situação de sexo CONSENTIDO, que está excitado na presença dela. Pior ainda se ela estiver trabalhando. Pior ainda se você está em uma posição de poder em relação a ela. Pior ainda se for na frente de sua família. Pior ainda se for na TV aberta. O mesmo acontece quando se recusa a dançar com uma mulher dizendo que ficaria – de novo- excitado. Também é assédio perguntar a uma garota de 16 anos se ela é virgem e se já viu o namorado nu. Principalmente se você for o patrão dela. É racismo é assédio, ao mesmo tempo, dizer a uma mulher negra que ela é “graciosa apesar de ser negra”, e também entra no combo assédio-gordofobia quando este senhor emenda, sem qualquer constrangimento: ” “Quem casar contigo vai ter dois prazeres: um na hora do bem-bom e outro na hora em que você sai de cima.” É inquestionavelmente racista questionar, depois que uma menina negra diz que quer ser cantora ou atriz: “com esse cabelo?”. É machista, ainda, ver a foto de uma artista e dizer: “com essas pernas finas e essa cara de gripe, ela não teria nem amor nem sexo”.

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Eu também cresci vendo Silvio Santos ridicularizar mulheres, pessoas negras, gays, trans e qualquer pessoa que não desfrutasse dos muitos degraus de privilégio dele. “Ele está gagá”, é o que muito tem se dito por aí. Rasgando dinheiro, que ele tanto adora atirar pros outros, duvido que esteja. Nossos corpos não estão à disposição de um idoso – ou qualquer pessoa – que acha que “a trajetória do pobre que venceu na vida” é salvo-conduto para dizer o que bem entende a quem quer que seja. Nossos corpos não são públicos e independentemente do que os esteja cobrindo, não são pretexto para qualquer ação alheia sobre eles.

Há quem ainda ache Señor Abravanel um “mito”, palavra emblemática em tempos tão assombrosos. Infelizmente, machistas, racistas e preconceituosos de toda natureza seguem e seguirão passando, não tenho a ilusão de que isso mude tão cedo – perdão pelo pessimismo. Mas não vai ser silenciosamente, ou ao som de risadas unânimes. Sabemos o valor de nossas vozes e nunca mais nos calaremos diante dos desvarios de um senhor que parece pensar apenas nos caprichos de sua própria pipa – cujo destino todos sabemos, por culpa exclusiva dele. Não seremos coniventes com os abusos de Silvio Santos – ou de quem quer que seja. “Apesar de fazer muita força, o vovô foi passado pra trás”.

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