Séries que podem ajudar a entender o Brasil de 2018
Quatro nomes ligados à cultura em Juiz de Fora indicam opções disponíveis na TV que despertam a reflexão sobre o atual momento político do país
O segundo turno das eleições presidenciais, que acontecem no domingo junto à definição de governadores em 13 estados e Distrito Federal, pode ser considerado – em especial para quem gosta de traçar paralelos com a cultura pop – o desfecho de uma das mais atribuladas temporadas deste bizarro, trágico, cômico, dramático, aterrorizante, misterioso e confuso seriado chamado Brasil.
Em suas 518 temporadas, houve períodos em que nada acontecia, como no início da colonização, afinal tudo era mato por aqui. Exceção feita a uma invasão francesa no Rio de Janeiro, uma ocupação holandesa lá pelo Nordeste, tudo transcorria sem muitas emoções. De pior, a vergonha da importação de negros escravos, oriundos da África e que teve o mártir Zumbi dos Palmares. Agitação mesmo começou com a Inconfidência Mineira, a chegada da Família Real, em 1808, até o primeiro grande plot twist (virada), em 1822, com a Independência em que mudou-se tudo para ficarmos no mesmo lugar. Depois, com exceção da abdicação de Dom Pedro I, foram mais de 50 anos em que, exceção feita à Guerra do Paraguai, pouca coisa aconteceu.
Novo cliffhanger (gancho) apenas 1888, com a Abolição da Escravatura, preparação para o grande plot twist de 1889: deposição de Dom Pedro II, o golpe que proclamou a República e o início do período mais complicado de “Brasil – A série”, quando alguém achou interessante colocar os militares na roda. E foram eles que deram boa parte da “emoção” durante o quinto século do seriado, promovendo tentativas e golpes bem-sucedidos – um deles, inclusive, durando 21 anos de trevas. Os plot twists foram vários: presidente que morreu no exercício do cargo, outro que se suicidou depois de dois golpes de Estado e uma eleição democrática, o general eleito pelo voto, Brasília, a renúncia de Jânio, AI-5, Anistia, Diretas Já, Tancredo eleito mas Sarney no poder, as primeiras eleições para presidente em quase 30 anos, Collor, impeachment, Plano Real, Lula…
Os últimos cinco anos, entretanto, talvez sejam os mais agitados de nossa história, afinal poucas vezes aconteceu tanta coisa em tão pouco tempo. Os protestos de 2013; a polarização da eleição presidencial em 2014; Lava Jato; impeachment de Dilma Rousseff; Temer, o Impopular, no poder, com suas gravações comprometedoras; outras e outras e outras gravações mostrando a banda podre da política; mais protestos; malas de dinheiro; Lula preso; Cunha, Cabral, empreiteiros e mais dezenas no mesmo caminho… E aí chegamos às eleições mais polarizadas da história, em que os efeitos de tudo que aconteceu nos anos mais recentes tomaram dimensão jamais imaginada.
Tentar entender o Brasil em que vivemos apenas pelos jornais, sites e noticiários de rádio e TV é difícil, muito difícil. Pelo WhatsApp e redes sociais, então, é trabalho para psicanalista ou quem tenha estômago. É aí que a arte chega para a ajudar, seja com livros, filmes, peças de teatro, artes plásticas, esculturas, instalações e, claro, a televisão e seus seriados. Seja sobre mundos reais ou imaginários, universos distópicos, apocalípticos, que retratem o universo da política ou a falta de perspectiva das gerações que nos sucedem, os seriados podem dar uma boa ideia do momento político e social que vivemos, seja a partir de paralelos óbvios ou por microcosmos que servem de metáfora para o Brasil de 2018.
Por isso, a Tribuna convidou quatro nomes ligados à cultura local para recomendar seriados que, de alguma forma, possam explicar tudo o que acontece por aí. A artista plástica Andréa Nunes, o músico Matheus Pierrot, a cineasta Mia Mozart e a divulgadora científica Thamiris Carvalho recomendam quatro seriados para serem maratonados e, quem sabe, ajudarem a entender um pouco mais o que acontece com “Brasil – A série” e, principalmente, os personagens que nela habitam.
MATHEUS PIERROT, músico da banda Usversus
“THE WALKING DEAD”
Um drama que mostra a sobrevivência de uma sociedade a um pós-apocalipse zumbi, chegando ao lance principal, a meu ver, que é do que a sociedade é capaz de fazer para sobreviver a si mesma dentro desta ocasião. Temos uma ligação total da série com o que vivemos em nossa sociedade hoje, principalmente em suas duas últimas temporadas exibidas (sétima e oitava). Dois grupos de ideologias diferentes entram em conflito por poder, fazendo com que atitudes absurdas sejam realizadas por tal objetivo, e nos demonstram como a falta de diálogo e entendimento do que se acha ser “diferente” pode nos cegar e defender ideologias que não fazem sentido para uma sociedade em paz.
THAMIRIS CARVALHO, divulgadora científica
“THE END OF THE F***ING WORLD”
Grande parte dos jovens do Brasil está confusa (mesmo achando que não) e votando em alguém que não a apoia de fato, e esses mesmos jovens são negligenciados desde pequenos. “The end of the f***ing world” é uma série de humor britânico em que acompanhamos dois jovens, um psicopata (com autodiagnóstico) e uma sociopata, e felizmente não temos mais um seriado que romantiza transtornos mentais. O que vemos é o abandono familiar, abusos e questão de gênero. Eles quebram todas as regras, mas, diferente do que imaginamos, não são psicopatas como em “Natural born killers” (“Assassino por natureza”, longa de 1994 de Oliver Stone) ou algo do tipo. Muitas vezes falam coisas completamente diferentes do que pensam. Às vezes os jovens optam pela pior escolha, mas, diferente dos adultos (tão superiores), podemos crer que vivemos numa sociedade em que o jovem não pensa direito e vê atos de violência como uma solução, uma falsa forma de se rebelar. Enquanto isso, eles são as maiores vítimas de um futuro incerto.
MIA MOZART, cineasta
“HOUSE OF CARDS”
“House of Cards” é uma série de drama político, mas parece mesmo uma versão mais leve da política feita no Brasil. Na série, a gente conhece as ambições, as articulações políticas e a imoralidade do congressista Francis Underwood (Kevin Spacey) e de sua mulher, Claire (Robin Wright). Nós somos convidados pelo próprio protagonista a assistir sua escalada desenfreada até o topo, custe o que custar. E nesse caminho tortuoso de Francis pelo poder político, a gente acaba se apaixonando pelo personagem e o odiando ao mesmo tempo… Isso sempre me soa familiar. É uma série bem tranquila para quem acompanha os jornais brasileiros. Tudo o que envolve “House of Cards” é atual e político. A série, que já era muito conhecida pela sua qualidade, esteve recentemente na boca do povo por um motivo muito infeliz. O ator Kevin Spacey, protagonista do seriado, foi acusado de assédio sexual pelo ator Anthony Rapp, e após a denúncia outras vítimas vieram a público. Toda a repercussão do caso gerou uma onda de denúncias vindas de vítimas de outros “chefões” de Hollywood. Kevin Spacey foi afastado da série. Roteiros foram reescritos, tudo tinha que ser repensado. E isso foi um marco histórico e político. Uma vítima tinha feito Hollywood sacudir. Mas se formos falar da série em si, sua competência em mostrar os jogos políticos e de desmascarar personagens carismáticos é inigualável. Ninguém é bom ali, todos querem algo. Todos querem poder. Novamente… me soa familiar. Para esse momento que passamos no Brasil, “House of Cards” pode ser uma mímica leve da realidade.
ANDRÉA NUNES, artista plástica
“THE HANDMAID’S TALE”
Vejo algumas semelhanças da série com o momento político atual. A nação Gilead foi criada com pilares no conservadorismo religioso, teocrático, misógino, homofóbico, inclusive o slogan “Deus acima de Tudo”. Uma coisa que não sei explicar nem entender bem é sobre o racismo, não consigo identificar por que a Moira (Samira Wiley) é negra, e isso parece irrelevante na série. “The handmaid’s tale” é feminista, mas além disso ela mostra que os direitos humanos foram todos perdidos, principalmente para as mulheres, mesmo as que sejam casadas com os caras que estão no poder. O único poder e liberdade que exercem é dentro dos seus lares. Pois todas as mulheres são subjugadas ao homem: as Aias, as Martas e as esposas, nenhuma mulher tem direito a nada. Quando disse que todo mundo perdeu seus direitos é que aparecem alguns homens enforcados também, pois de alguma forma foram contrários ao regime de Gilead.
Eu não sei se isso (que é mostrado na série) acontecerá no país, mas o discurso é muito próximo com que acontece no programa… Bolsonaro disse que aquela deputada não merecia ser estuprada, mas quem merece, afinal? Na série, mulheres são estupradas num ritual RELIGIOSO, tudo para se manter a espécie humana… Elas merecem isso? Quando vejo mulheres apoiando esse candidato, eu vejo a esposa do General Waterfred, uma das mentoras do novo regime, mas não sei bem se ela tinha dimensão do que viria, assim como essas eleitoras também não sabem. Bom eu acho que boa coisa não será!
Tem uma personagem lésbica que é chamada de Traidora do Gênero, castigada cruelmente por isso. Acho que as minorias serão sim perseguidas sob o aval do discurso violento contra gays, lésbicas, mulheres, negros e índios. Acredito que haverá um policiamento de cidadãos contra cidadãos. Não sei se minhas suposições irão se concretizar, mas vejo muita semelhança na série com o que estamos passando e vamos passar.