A angústia e o pessimismo pelo futuro – e como BoJack Horseman pode nos fazer pessoas melhores
Oi, gente.
Ah migas e ah migos.
Creio que todos, quase todos, a maioria, boa parte, alguns, uma meia dúzia, eu e você acreditamos que vivemos tempos sombrios (ou talvez seja apenas coisa minha). Tempos sombrios que se arrastam pelos últimos anos, meses, semanas, dias, últimas horas. Agora mesmo. É uma angústia pelo momento que vivemos, um pessimismo permeado pelo sentimento de que a tempestade não passou, na verdade ainda está lá longe no horizonte, que dias piores virão.
E não é só pela política. Esta é, talvez, o ímã que atrai todo esse pessimismo, mas por isso mesmo é só uma parte. Na verdade, o grande problema é a humanidade. Acreditávamos que a internet seria o farol de uma nova era de esclarecimento, conscientização, reforço do senso crítico, do questionamento, mas ela só tem potencializado o pior que nós temos e somos. É ódio, preconceito, intolerância, perseguição, agressividade, machismo, misoginia, xenofobia, homofobia, ignorância em estado puro. Parece que o pouco de bom que aprendemos todos estes anos na escola, com nossos pais, vai sendo esquecido, ignorado, em nome de uma nova “verdade” que escancara sentimentos ruins que estavam latentes, mas faltava a coragem que o “anonimato” da Web alimenta.
Tudo isso me preocupa, e muito. Não por mim, que chego aos meus 45 na próxima sexta-feira, afinal acredito que já passei pelos 50% da minha existência e agora é ladeira abaixo. No máximo, uma decepção pessoal por perceber que tudo que aprendi na escola e na universidade, todas as coisas que li, referências literárias que servem de norte moral, filmes, documentários, telejornais, todas as coisas acumuladas em minha existência, minhas experiências, de pouco ou nada servem ao exercer meu ofício, decepção esta que – acredito – seja ainda maior para os colegas que precisam lidar com questões factuais na política, polícia etc.
Porque vemos todos os dias, seja pessoalmente, nos comentários em sites e redes sociais, desconhecidos, amigos, até mesmo as pessoas mais próximas e amadas com um discurso equivocado, baseado no ódio, preconceito, na desinformação, ignorância, capazes de acreditar numa corrente anônima de WhatsApp e não no esforço de quem trabalha horas, dias, preocupado em apurar os fatos e orgulhoso de ter feito seu melhor. O mesmo acontece na cultura, minha editoria desde que entrei na Tribuna – ainda que em menor escala -, pois não faltam hordas a bradarem que artistas são vagabundos, que damos cartaz para coisas que “não são arte”, “degeneradas”, enfim.
Preocupa-me pensar no futuro d’A Leitora Mais Crítica da Coluna, pessoa que amo e admiro de uma forma que é impossível explicar. É das figuras mais inteligentes e bondosas e carinhosas que conheci, que ama sua família, preza os amigos e sonha com um mundo em que o bem comum, a cidadania, a a paz e a harmonia prevaleçam sobre a barbárie e a ignorância e o ódio. Mas que sofre, também, por ver tantos entes queridos terem mudado com o tempo, com posturas e opiniões que em nada parecem com as pessoas das histórias que ela conta de sua juventude, ou que tive o prazer de conhecer desde que começamos a namorar.
E que acredito viver suas angústias, também, por ter estudado tanto por tantos anos, ter feito mestrado, doutorado, passado um período na NYU, estar no final de seu pós-doutorado, tendo pesquisado anos a fio sobre a ditadura militar e seus malefícios, o triste papel da imprensa nos anos de chumbo, e ter que encarar tanta ignorância e cretinice e desonestidade intelectual por parte daqueles que tratam os estudiosos de nossa história como um bando de comunistas mentirosos, esquerdopatas bolivarianos. E coisa pior.
Mas o que mais me preocupa é pensar no futuro de meu filho. Antônio, O Primeiro de Seu Nome, tem pouco mais de dois anos de idade, está começando a falar, ter sua personalidade, suas preferências, mas é inegavelmente uma criança feliz, carinhosa, ativa, inteligente, curiosa, com tanto futuro pela frente. É, claro, uma criança inocente, sem maldade, que não tem ideia do quanto o mundo (não) é bão, Sebastião. Por mais que imaginássemos ser difícil, a missão de criar, educar um ser humano é talvez a maior responsabilidade que possamos ter.
Dar comida, roupa, um teto, creche, plano de saúde, é apenas a parte “menos” importante. O que realmente vale é dar o exemplo, mostrar que ele pode ser uma pessoa boa, honesta, de bom caráter, despida de preconceitos, ódios, egoísmo, que tenha empatia pelo próximo e acredite na importância de fazer sua parte pelo bem maior. Que entenda o que é cidadania e o quanto ela é essencial para uma sociedade mais justa, menos dividida.
Muita coisa pode ser feita para tentarmos dar o melhor exemplo. Sermos os melhores país possível, seguir os bons exemplos de nossas mães, pais, e não repetirmos seus erros. E oferecer cultura, bom entretenimento, aos poucos mostrar a ele o melhor que a arte pode oferecer – até para que não se torne mais um a pensar que cultura é lixo produzido por pervertidos, vagabundos. Começar aos poucos com desenhos bobinhos mas que passem valores como amizade e respeito – e acredite, “Peppa Pig” é ótimo pra isso.
Depois, os livros cheios de ilustrações, aqueles com áudio para ensinar os sons de animais, as primeiras letras. Aí vem a alfabetização, as histórias simples e educativas. Passar para os quadrinhos infantis. Contos de fada. Desenhos animados mais elaborados. Boa música, começando com as feitas para crianças e evoluindo aos poucos, mostrar os clássicos, as novidades. Incentivar se ele quiser aprender algum instrumento musical, praticar um esporte, quiser desenhar, escrever suas historinhas.
Passar para os bons filmes, não importando se é “Feitiço do tempo”, “Taxi driver”, “Pulo Fiction”, “Vingadores”, “Os sete samurais”, “Edward Mãos de Tesoura”, “Se beber não case”. Escritores como Albert Camus, o maior de todos, ou Murakami, Rubem Fonseca, Paul Auster, Neil Gaiman, Marcelo Rubens Paiva, Stephen King, Edgar Allan Poe, a série “Harry Potter”. Teatro, espetáculos de dança, museus, exposições. Quadrinhos de Frank Miller, Grant Morrison, Will Eisner, Stan Lee, Bill Sienkiewicz. Enfim, mostrar que há formas infinitas de aprender com a arte, tirar delas o melhor exemplo para ter criatividade, conhecimento, cultura, caráter, rir, chorar, emocionar. Aprender o quanto o ser humano pode ser múltiplo em suas personalidades, a natureza contraditória que todos nós temos, e não se deixar levar pela ignorância, o obscurantismo, o preconceito.
Antônio tem um longo futuro pela frente. Terá suas preferências, curiosidades, gostos, e espero poder ajudá-lo quanto a isso. É difícil imaginar se as coisas das quais gosto hoje vão provocar seu interesse amanhã, mas dentre todos os bons exemplos existe um que, na verdade, era para ser o tema exclusivo da coluna desta semana, mas é tanta angústia, decepção, raiva acumulada nos últimos dias… Mas enfim, prometi semana passada comentar a quinta temporada de “BoJack Horseman”, a melhor animação da atualidade. E que passa na Netflix. E que já comentei por aqui algumas vezes. E que é imperdível.
A história se passa em um mundo em que animais antropomórficos convivem com seres humanos como se fosse a coisa mais normal do universo, em que o personagem principal é um cavalo que estreou uma sitcom de sucesso nos anos 90 e depois passou por décadas de ostracismo, mas que agora tem uma nova chance de redenção ao estrelar uma série policial.
Um dos grandes trunfos do programa criado por Raphael Bob-Waksberg é mostrar que a vida nunca é fácil, mesmo quando acreditamos que as coisas estão melhorando. BoJack vê a sua nova série ser um sucesso, mas isso não quer dizer que ele se tornou uma pessoa feliz. É preciso enfrentar os demônios do passado; a sua própria personalidade narcisista e com dificuldade de se relacionar com os outros; a pressão advinda do sucesso; suas dúvidas quanto à validade de seu trabalho; a falta de empatia com o próximo; a dor da perda; o medo de encarar suas falhas de caráter; a crescente dependência de drogas lícitas; a espiral de insanidade da qual não consegue sair e que precisa, afinal, de seu reconhecimento de vai a lugar nenhum sozinho, apenas à estrada sem volta da autodestruição.
Em suma, é gente como a gente. Com seus desejos, alegrias, tristezas, falhas, decepções e ações que podem magoar e prejudicar a vida de outros. Assim como BoJack, outros personagens também encaram problemas de gente grande, como a dor do divórcio, solidão, o sonho da maternidade, a insegurança quanto a suas decisões, a sensação de fracasso, o universo machista do show business.
A exemplo das outras temporadas, o quinto ano de “BoJack Horseman” tem apenas doze episódios, mas são histórias que você termina uma e logo emenda em outra, tão boas e parecidas com nossas vidas. Você assiste ao segundo episódio (“The dog days are over”) e logo quer partir para o próximo. E aí vem “BoJack the feminist”, “Free churro” (o melhor de todos), “INT. SUB”, “Ancient history”, “The showstopper” e “The stopped show”, a temporada acaba e você precisa de mais. E volta para o primeiro ano. Não sem antes entender um pouco mais sobre si mesmo, sobre todas as coisas boas e ruins que fez e faz e fará e como, sem querer, pode ter magoado tanta gente por aí. E ainda vai magoar. E ter sido legal às vezes. E escroto em tantas outras. E ver como tem tanta gente ruim e equivocada por aí, e pensar que você pode, pelo menos, tentar ser alguém melhor.
Se ainda não conhece a série, a oportunidade é essa. Todas as temporadas estão lá na Netflix, e é chance de rir, se emocionar, ficar com aquele gosto agridoce de perceber que animais antropomórficos podem ser tão iguais – e até mesmo melhores – a nós. Aprender como podemos errar tanto, e aprender nada com isso. Ou tentar, a partir de então, ver como nossa condição humana é miserável e que é preciso mudar, e quem sabe tornar nosso futuro melhor.
Se puder, assista acompanhado. Seja por amigos, a razão do seu afeto; se ele/ela já tiver idade para entender, chame seu filho e sua filha para assistir. Ou, se for eles a te convidarem, não perca tempo e dê uma chance.
O mundo tem andado de mal a pior, e aprender com personagens tão falíveis como nós pode ser a chance de nos tornarmos pessoas melhores. E quem sabe, aos poucos, passarmos esses exemplos para o mundo. Antes que ele fique insuportável de vez e você tenha a angústia dolorosa de perceber que nossos filhos terão um legado de ódio, intolerância, preconceito, divisão, e sejam vítimas do pior que a humanidade tem a oferecer.
A minha angústia, o meu desânimo, o meu pessimismo, são do tamanho do mundo. Pelo menos hoje. Mas não vou desistir de dar o melhor pelo e para meu filho. Não desista dos seus, eles merecem.
Vida longa e próspera. E obrigado pela paciência em ler este desabafo.
Prometo melhorar.