‘A primeira noite de crime’ estreia nesta quinta-feira (27)

Filme mostra a origem das noites de ‘Expurgo’ da franquia ‘Uma noite de crime’


Por Júlio Black

27/09/2018 às 07h00

Desde que se tornou a espécie dominante da terceira pedra a partir do Sol, a humanidade acumula momentos que mostram o quanto podemos ser cruéis e desprezíveis. Eis uma pequena lista e que conta apenas com eventos do século XX: o massacre dos armênios, o nazismo e o holocausto, os “expurgos” de Stalin, o talibã, Estado Islâmico, os genocídios de Ruanda e Camboja, a Guerra dos Bálcãs, a ditadura militar brasileira entre 1964 e 1985. Para muitos, até mesmo a atual campanha eleitoral. Em todos os casos, os motivos são variados: preconceito, xenofobia, ódio ao que é estranho à cultura e origens, o desejo do poder pelo poder, ressentimentos datados de séculos, a absurda ideia de “supremacia racial”.

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Casal de irmãos se vê em meio à anarquia quando permanece em Staten Island, local escolhido para a experiência do primeiro ‘Expurgo’ (Foto: Divulgação)

Um ponto comum em todas essas histórias, porém, é o fato de que não se tratavam de algo espontâneo surgido entre milhares ou milhões de pessoas. Quase sempre foi preciso um gatilho, fosse ele uma palavra de ordem, um acontecimento, a distorção de fatos, que aos poucos tomavam dimensão tal para que aqueles que jamais agiriam enquanto indivíduos tomassem coragem para, junto a outros, extravasarem os piores sentimentos. Esta é basicamente a premissa da franquia “Uma noite de crime”, surgida como sucesso inesperado em 2013 da produtora Blumhouse e que, duas continuações depois (todas dirigidas por James DeMonaco), chega aos cinemas nesta quinta-feira (27) com “A primeira noite de crime” para mostrar as origens da série — que recentemente ganhou um spin-off para a TV.

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No caso de “Uma noite de crime”, o longa partia de uma premissa absurda e teoricamente impossível de acontecer no mundo real, mas que é interessante o suficiente para gerar reflexão a respeito de nossa natureza. Depois de sucessivas crises econômicas e ondas de violência nos Estados Unidos, o povo elege para a Presidência um candidato do Novos Pais Fundadores da América, partido radical e de propostas simplistas, mas que encontra eco no desespero do momento.

Entre as medidas está o “Expurgo”, um período de 12 horas, uma vez por ano, em que a lei deixaria de valer em todo o país, e tudo se torna permitido, seja roubo, vandalismo, estupro, espancamento, assassinato. Sem polícia e exércitos nas ruas, todos os crimes cometidos nesse período de tempo são automaticamente anistiados. O objetivo, de acordo com os novos governantes, é mostrar que os americanos, liberados para um período de catarse, ajudariam a “purificar” a nação nos 364 dias seguintes — o que acontecia na história, com a economia em pleno vapor, desemprego por volta de 1% e queda brutal nos índices de criminalidade.

Só que “Uma noite de crime” mostrava, no final das contas, que o “Expurgo” servia muito mais como uma disfarçada limpeza étnica-social, com os mais pobres, principalmente negros e latinos, sendo as maiores vítimas da noite de violência, morrendo aos milhares, enquanto os mais abastados se escondiam em casas super protegidas – alguns, porém, aproveitavam a data para expressar todo o seu ódio pelos desvalidos, caçando-os pelas ruas por diversão e “direito”.

Experiência sociológica ou genocídio disfarçado?

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Y’lan Noel interpreta o traficante interessado em manter seus negócios que, ao tomar ciência da carnificina, se torna o herói da história (Foto: Divulgação)

Agora sob direção de Gerard McMurray, “Uma noite de crime” mantém alguns dos defeitos dos longas anteriores (falta de explicação convincente para a existência do “Expurgo”, personagens caricatos, roteiro mal desenvolvido), mas se garante como bom filme ao mostrar as origens da noite de matança livre e generalizada. Aproveita, ainda, para ir mais fundo nas críticas política e social, sem medo de fazer referências à ascensão ao poder de Donald Trump, os movimentos de extrema-direita, as manifestações de Charlottesville e o preconceito contra as minorias e os mais fortes.

Com os Estados Unidos ainda mergulhados na crise, os Novos Pais Fundadores defendem que a América só conseguirá se erguer, mais forte e “purificada”, se expurgar todo o ódio, frustração e demais sentimentos ruins acumulados. Por conta disso, eles propõem — e conseguem aprovar — uma experiência social conhecida como “Expurgo”, em que os participantes estariam livres por 12 horas para cometer todo tipo de crime sem precisar prestar contas com a lei, e que depois disso a comunidade se tornaria “melhor”.

Como local da “experiência” é escolhido Staten Island, o mais pobre dos cinco distritos de Nova York e que tem uma população majoritariamente negra e latina, disposta a aceitar os US$ 5 mil oferecidos para cada um participar do experimento – fora os “bônus” por crime cometido. Apenas uma minoria, geralmente os de melhor condição financeira, não concorda com a proposta e sai de Staten Island antes do início do evento. O longa mostra, mesmo que de forma superficial, o debate entre quem defende a experiência e aqueles que a criticam por acreditar ser apenas uma forma de higienização da sociedade, eliminando os mais pobres e — por consequência — necessitados de ajuda federal.

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Mesmo com a certeza da impunidade, população se esconde atrás de máscaras para cometer crimes (Foto: Divulgação)

A princípio, o “Expurgo” não apresenta nas primeiras horas o resultado esperado pela psicóloga responsável pelo projeto, interpretada por Marisa Tomei, e pelo governo. Com exceção de um psicopata — que nada acrescenta à trama — e uma meia dúzia de vândalos, a maioria das pessoas fica em casa ou vai para as ruas festejar. É nesse ponto que o longa mostra que a sociedade, muitas vezes, precisa de um gatilho para colocar para fora todo o ódio e ressentimento represados. Só depois que um grupo de mercenários racistas contratado pelo governo (interessado em que o “Expurgo” seja posteriormente expandido) parte para o genocídio é que as pessoas tomam coragem de ir às ruas e participar da anarquia — porém, quase todas usando máscaras, mostrando que elas não têm medo de ser cruéis, desde que não sejam reconhecidas e tenham que encarar posteriormente a responsabilidade pelos seus atos.

Em outra prova de como o mal pode ser banalizado, toda a noite de crime é exibida e debatida ao vivo pelas emissoras de televisão, mostrando que o distanciamento pode tornar a violência como um reality show sádico. O público do cinema, porém, não terá essa sensação porque a história é contada pelo ponto de vista de três personagens: Dimitri (o ótimo Y’lan Noel), traficante mais preocupado inicialmente que o “Expurgo” atrapalhe seus negócios; Nya (Lex Scott Davis), ex-namorada do criminoso e atualmente ativista social; e seu irmão, Isiah (Joivan Slade), que deseja se vingar do psicopata Skeleton (Rotimi Paul).

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Com pouco mais de 90 minutos de duração, “A primeira noite de crime” pode repetir alguns defeitos de seus antecessores e ter menos suspense que “Uma noite de crime”, mas acerta em boas cenas de ação e por aproveitar uma história inverossímil para fazer o público refletir sobre até que ponto a humanidade pode descer em seus instintos mais condenáveis — e como somos, geralmente, governados por gente cheia de preconceito e desprezo à diversidade. Não é pouca coisa, afinal.

A primeira noite de crime
UCI 3 (leg): 22h20 (exceto qua). UCI 4 (dub): 20h. Cinemais Jardim Norte 1 (dub): 15h30, 19h. Cinemais Jardim Norte 1 (leg): 21h20.
Classificação: 18 anos

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