O canto dos pássaros de Marcílio por todo canto

Considerado um dos maiores criadores de pássaros do país, Marcílio abre as portas de sua casa para falar de uma paixão que se tornou conhecimento profundo


Por Mauro Morais

26/08/2018 às 07h00

Aos 74 anos, Marcílio prepara-se para deixar que os filhos deem continuidade ao negócio que envolve a delicadeza dos pequenos animais e o musical som que emitem (Fotos: Olavo Prazeres)

O Oryzoborus angolensis, nome científico do curió, é preto com o peito vinho quando macho, e marrom, quando fêmea. Tem pássaros fêmeas que, se não receberem vitamina E, não reproduzem. O casal não pode permanecer junto. O macho gala (termo utilizado para a cópula dos pássaros) a fêmea. Para isso, é preciso que ela permita. Após o ato, que ocorre na gaiola dela, ele volta para a própria “casa”. “Geralmente, se ficarem juntos, ela acaba matando-o. E eles são territorialistas. Se colocar um casal vendo o outro, eles não chocam. Se estiver solto, um não chega num raio de 100 metros onde o outro esteja chocando”, conta Marcílio Leonardo Picinini, aos 74 anos de uma vida em ritmo do canto dos pássaros.

Preparo dos ninhos feito por Marcílio. (Fotos: Olavo Prazeres)

“Fui criado no mato. Para estudar, se fosse passar pela estrada, levava uma hora, se passasse na trilha no mato, levava 20 minutos”, recorda-se o homem que optava pelo caminho mais curto, onde via as mais variadas espécies de bichos. “Desde criança, eu tinha muitos pássaros. Lembro que meu pai subia nos galhos das árvores para pegar aqueles periquitinhos verdinhos. E eu adorava. Tinha mais de 50 espécies, azulão, sabiá, pássaro preto e mais um monte”, narra, no terceiro andar de uma casa do Centro de Matias Barbosa, onde vivem ele, a família e seus mais de 1.200 pássaros, no criadouro que leva seu sobrenome, Picinini, e é considerado um dos maiores e mais importantes do país.

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“Comecei a criar há muito tempo. Eu era caminhoneiro, e, quando viajava longe, ao voltar, minha mãe, que ficava cuidando, contava que a polícia florestal tinha batido lá e soltado todos eles. Então fui registrar meus passarinhos. Procurei o órgão responsável, e eles me deram um endereço para eu entender como funcionava. O homem morava em São Mateus e fazia estudos para registrar pássaros. Naquele tempo, o curió estava quase em extinção. E ele tinha um casal chocando no corredor, outro no banheiro e mais outro na área. E me contou que eles são territorialistas”, narra. Foi o bastante para que Marcílio doasse sua vasta coleção e focasse apenas no curió. “Os machos eu negociava e trocava por fêmeas e fui aumentando a criação. Quando vi, já tinha mais de mil fêmeas.”

Parede com troféus e condecorações recebidos pelo criadouro. (Fotos: Olavo Prazeres)

Era nos anos 1970, e, segundo o criador, ninguém sabia manejar grandes criações de pássaros. Reinava o amadorismo. “Aprendi por curiosidade. Antigamente tinha um livrinho ensinando a criar bicudo e curió. Eu achava que ele (autor) não tinha deixado nada para alguém acrescentar. Mas não havia a prática. Com o tempo, fui vendo que ele ensinava o início, o restante eu fui descobrindo sozinho. Hoje entendo pela prática que tenho. Só de olhar um passarinho sei o que ele tem, se é oxidose ou diarréia, se está com febre ou não. E tudo o que descubro ensino. Não guardo só para mim”, orgulha-se ele, pai de quatro e avô de cinco, além dos milhares de minúsculos alados que ajudou a trazer ao mundo.

Trinca-ferro (Fotos: Olavo Prazeres)

Saltator maximus

O Saltator maximus, popularmente conhecido como trinca-ferro, não carrega nas penas a diferença entre macho e fêmea. A distinção está no canto, mais vigoroso neles e mais piado nelas. “O canto bonito é ‘curricutiltil boi’, com mais notas. O valor está na rapidez”, explica Marcílio Picinini. Muito criado para torneios de canto, o curió também produz elogiados sons. “Tem mais de dez categorias de competição para o curió cantar. Tem o canto simples, o canto por repetição e diversos outros. Eles são iguais, mas em cada região tem um tipo de canto. Na nossa região é o canto paracambi. Em São Paulo já é o canto praia. No Maranhão é o timbira. Em Alagoas é o vovôviu. Em cada lugar tem um canto”, esmiúça o homem cercado por alto-falantes de todos os lados, reforçando o canto ideal para cada espécie, além da sala acústica que ensina os pequenos a reproduzirem cantos sem a interferência de outros modelos. Ao longo das mais de quatro décadas na companhia dos cantores de asas, Marcílio foi dono de muitos vencedores de torneios nacionais, além do campeão dos campeões, que vendeu a R$ 100 mil apenas a metade. “Era meu e do meu filho. A pessoa que comprou ficava com ele, participava dos torneios, de agosto a dezembro, e em janeiro ele voltava para nós. Eu cruzava o passarinho. Depois parava o animal, que fazia as mudas das penas, até que chegava o momento de voltar para os torneios”, lembra ele, um colecionador que já tirou do bolso três dígitos para a compra de um pássaro. “A cada vez que eu ia ver o passarinho, o dono mudava o preço. Na última vez, pedi um documento com um prazo, e ele falou que manteria o valor até domingo, à meia-noite. Eu tinha R$ 70 mil. Fui na minha irmã, que trabalhava num banco, e pedi R$ 40 mil emprestados. Meu pai estava comigo e falou que eu era louco. Gente melhor no mundo não existia, mas meu pai era severo. Ele achava que era só os R$ 40 mil. Eu acreditava no negócio. E comprei o passarinho, que só depois de três meses começou a cruzar. Depois de uns tempos, ele morreu”, conta. Tempos depois, o homem vendeu o caminhão, quitou a dívida, e decidiu criar ele mesmo seus pássaros, apostando num trabalho que, até então, tinha a ajuda da esposa enquanto ele seguia em longos trajetos.

Pássaro preto (Fotos: Olavo Prazeres)

Gnorimopsar chopi

O Gnorimopsar chopi, famoso pelo nome de pássaro preto, gosta tanto de carinho que chega a fechar os olhos enquanto um dedo acaricia sua cabeça. Tal qual um cachorro, esfrega-se na mão pedindo mais carinho. A docilidade, contudo, só se torna característica em ambientes distantes do estresse. Extensão de sua casa, o criadouro de Marcílio não possui lâmpadas. Respeita o desejo do Sol. E no raiar do dia, os funcionários dispõem em todas as gaiolas o pote com água para o banho, em seguida acontece a troca e higienização da água e da bandeja de sustentação. O alimento também é substituído. O zelo só não dá conta da beleza das gaiolas. E Marcílio explica: “Elas ficam feias porque não dá para pintar. Se pinta, o passarinho descobre e come a tinta e sente mal. E se enferrujar, não tem problema, porque o ferro faz bem.” No espaço, um cordão de sisal ajuda o animal a se exercitar, facilitando, inclusive, o posicionamento do ovo no ventre da pequena mãe. Os pássaros, logo que nascem, recebem um anel de ferro banhado a ouro, com seu registro de identificação. O sangue é coletado, ou um minúsculo pedaço da unha, para fazer o exame de sexagem, que se reúne aos demais dados. Com o passar dos anos, Marcílio viu ser formado um mercado e a legislação de controle se tornar complexa. “Essas gaiolas não existiam”, aponta ele, autor do modelo que hoje utiliza. “Era tudo gaiola de madeira, mas se tivesse uma doença, contaminava a madeira e nunca mais saía. Eu criei as gaiolas que agora usam nos criadouros. Eu tinha um amigo ferreiro que fazia do jeito que eu pedia. Hoje as fábricas já produzem, e todo mundo percebe que não é só o pássaro que dá lucro, mas os acessórios como bebedouros, a comida, as gaiolas. É um mercado que gera muitos empregos”, reflete Marcílio, que emprega seis funcionários. “Tenho uma despesa igual à de uma empresa grande.”

Tiê-sangue (Fotos: Olavo Prazeres)

Ramphocelus bresilius

O Ramphocelus bresilius tornou-se conhecido pela alcunha de tiê-sangue, que em sua forma masculina é vermelho como o sangue. As fêmeas, no entanto, são em tons de marrom. Sua exuberância é proporcional à excentricidade. Os machos possuem uma pequena porção branca na base da mandíbula, que exibem ao máximo, levantando a cabeça, para atrair a fêmea. Ela, por sua vez, como muitas outras espécies, escolhe seu lugar. “O passarinho, se tirar três metros do lugar, não choca. Se voltar, ela choca. No mato, o coleirinho, se vem o gato e come os filhotes dela, ela depois faz o ninho no mesmo lugar ou bem perto”, explica Marcílio, que no início de seu criadouro investia em caras cópulas. “O criador vinha de São Paulo, e eu pagava U$ 500 ou U$ 1.000 por gala. As fêmeas já estavam preparadas. E geralmente dava dois ou três filhotes, mas corria o risco de botar ou não botar, de botar e não chocar, ou de ela matar o filhote”, recorda-se ele, que hoje acompanha em detalhes a reprodução de seus pássaros, incluindo no processo, até mesmo, uma chocadeira para os casos de risco. Os nomes são muitos, como o Velocidade, que “só dá filho bom” e “tem filho no Brasil valendo uma fortuna”, ou o premiado Mega Cena (com essa grafia mesmo) e Ana Hikmam (quase idêntico ao da atriz, Ana Hickmann). Os valores variam de R$ 300 até o do inestimável preço do curió, que fica na entrada de sua casa, sem interferência no canto perfeito. “O preço do filho é três vezes maior que o dos outros. Então, não vendo ele”, diz o homem que, nos períodos melhores, chegou a ter mais de 4 mil pássaros. Sente pena da vida em cativeiro? “Eles são criados assim. Se soltar um passarinho como o bicudo, que não é aqui da terra, vai morrer. Pena a gente deve ter do pintinho que cresce só até 28 dias para o abate. O cachorro veio do mato. O gato, o cavalo, o boi, tudo veio do mato. Nada surgiu dentro de casa.”

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Coleiro com detalhe da anilha de ferro banhada a ouro. (Fotos: Olavo Prazeres)

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