Panfletos no Manoel Honório


Por Wendell Guiducci

14/08/2018 às 07h00

A menina que distribui panfletos na ponte do Manoel Honório não deve ter mais que 16 anos. Usa uma blusinha rosa, calças jeans e dirige-se às pessoas com um quase-sorriso, sempre balbuciando alguma coisa que, de dentro do carro, não consigo entender. Enquanto entrega seus papéis, às suas costas, contra o céu azul, o duto de água da Cesama é um arco-íris monocromático de fuligem e dióxido de carbono, sem potes de ouro ou quaisquer tesouros ao fim, somente lama, lixo e detritos humanos.

Um homem estanca ao lado dela na calçada.

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Começa a falar alguma coisa e ela desvia o olhar dele. Que teima. É um homem grisalho e de cara esquelética, vestido com um casaco de moletom e jeans largos e surrados que talvez lhe tenham servido melhor quando era vivo. Ele carrega uma bolsa. E insiste em alguma coisa na qual a menina claramente não está interessada. Ela dá um passo de lado, afastando-se dele, mas mantém a postura e segue firme em seu imperioso trabalho de distribuir propagandas às pessoas que passam e não notam a presença do cadavérico homem grisalho. Nem a dela. Pegam o papel como que das mãos do vento e jogam em uma lixeira na esquina adiante.

Ela sua ao sol do início da tarde, os cabelos esticados até seus ombros.

A maquiagem mal disfarça as espinhas, tantas espinhas que acentuam a textura juvenil da pele morena oleosa. Os lábios grossos e cor de rosa mantêm um esboço perpétuo de sorriso, que nunca chega a se perfazer. E o homem insiste. Abre os braços um pouco languidamente. Meneia a cabeça. Argumenta algo em seu favor – deduzo pela maneira como ele leva as mãos em concha, as pontas dos dedos contra o próprio peito.

É um invasor.

Eu presto atenção nessa menina feita de vento vestida com sua blusinha rosa distribuindo panfletos sobre a ponte do Manoel Honório e no suor de sua testa ampla e nos seus olhos índios e nesse homem-cadáver e temo brevemente pelo que possa vir a acontecer. Me empertigo ao volante. Olho diretamente para os dois, pólos que se repelem.

Mas nada acontece.

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O homem, derrotado diante da postura estoica da menina que entrega papéis, vai embora antes que o semáforo se abra para mim. Atravessa a rua e some entre os carros. Nunca mais o verei de novo. A menina, eu não sei. E quando o sinal finalmente mostra sua luz verde em sentido ao Centro da cidade, nenhum carro à frente se move. Está quente e é inverno. Penso que a Avenida Rio Branco pode ser um lugar dos diabos num sábado às duas da tarde.

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