Banda de JF canta “Avôhai” na reedição do 1º álbum solo de Zé Ramalho
A faixa-título “Avôhai”, interpretada por Eminência Parda, abre disco com releituras da cena independente nacional
Naquele ano, a Argentina sagrava-se campeã da Copa do Mundo contra a Holanda, e semanas depois morria o Papa Paulo VI, no mesmo mês em que tomava posse o novo Papa João Paulo I, cuja morte aconteceria 33 dias depois. Naquele ano, ainda, chegava ao Vaticano o simpático João Paulo II e, em Brasília, João Batista Figueiredo, general que deu sequência ao regime militar, já com o Ato Institucional nº 5 extinto, mesmo estando em vigor, um mês antes, o decreto que proibia greve dos setores de segurança e serviços públicos do país. Naquele ano, que entrou em vigor a Lei de Segurança Nacional e parte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro foi incendiada, a Justiça responsabilizou a União pela morte do jornalista Vladimir Herzog, morto pelos militares. Não apenas a reabertura das investigações acerca da morte do jornalista, após condenação da Corte Interamericana de Direitos Humanos no últimos mês, liga 1978 a 2018. Uma das principais trilhas sonoras daquele agitado e marcante ano retorna à cena, mesmo sem dela nunca ter saído. A releitura do álbum de estreia de Zé Ramalho, cantado por bandas e cantores do cenário independente do país, mostra-se duplamente como um convite à revisão do passado e à enunciação de um futuro na música brasileira.
“Foi no lançamento desse disco de 1978, que surgiu uma carreira que hoje e sempre vai arrastar para as plateias de teatros e ginásios multidões nas quais despontarão milhares de carinhas de meninos e meninas, que ainda não tinham nascido nem sido planejados por seus pais, quando Zé empunhou o violão para compor seus primeiros clássicos. Um público tão jovem quanto os componentes das bandas que agora fizeram a releitura”, aponta o crítico musical Aloysio Reis na apresentação do disco “Avôhai 40 anos (remake pop rock)”. “Nosso cantador nunca se deixou seduzir pelo jet set da MPB. Preferiu a verdade dos palcos e os caminhos da criação permanente para lapidar suas joias musicais. O público que lota seus concertos sabe disso perfeitamente”, acrescenta o jornalista, demonstrando a coerência presente no retorno de Zé ao trabalho que o projetou.
A reedição, que sai pelo selo Discobertas, o mesmo que há dez anos lançou a releitura nacional do “White álbum” dos Beatles, reúne as nove faixas autorais de Zé Ramalho, e outras três que se repetem. De acordo com o produtor Marcelo Fróes, foi o próprio cantor e compositor paraibano quem escolheu os músicos. “Ele já gostava muito dessas gravações. E por estar fazendo 40 anos, quis revisar. É um disco muito cultuado, muito importante para ele e para a música brasileira. O Zé queria um disco mais pesado, mais roqueiro, e acho que conseguiu, porque a grande maioria das faixas tem esse peso”, observa ele, sobre o disco que se abre com “Avôhai” interpretada pela banda juiz-forana Eminência Parda. “Ele (Zé Ramalho) tinha o CD e deixou comigo para eu procurar os músicos na internet”, conta Fróes, que contatou todos os artistas das 12 faixas, entre eles Robertinho de Recife, que canta “Bicho de 7 cabeças”, e a santista Via Rock com sua versão para “Chão de giz”.
‘Sua capacidade de ser raiz, orgânico e universal sempre nos inspirou’
O rock está ali, nos metais, mas também sobram afetos e alguma catarse. A “Avôhai” da Eminência Parda é um tanto o que está na canção de Zé Ramalho e outro tanto o que levam no peito Edson Leão, Danniel Goulart, Guiley Cardoso, Luiz Lima, Marcelo Panisset e Wesley Carvalho. Não à toa seus mais de seis minutos. “Minha audição de Zé Ramalho passa muito pouco pelo racional. É algo mais espiritual. E a cada vez que ouvimos as músicas desse disco, elas sempre chegam a algum ponto de difícil tradução. No entanto, dá para dizer que algo tão raiz e tão universal dificilmente fica datado, por não estar preso ao tempo”, confirma o integrante Danniel Goulart, responsável pelo violão de 12 cordas, pelo bandolim e alguns vocais. “‘Avôhai’, pra mim, virou um momento de reverência à ancestralidade, principalmente após as mortes do meu avô (Olívio Leão) e do meu pai (Cleuber Ferenzini). A magia e o mistério das canções prosseguem intactos, mas com um ingrediente de vida que só o tempo adiciona”, acrescenta o vocalista Edson Leão.
Onipresentes no repertório da banda, Zé Ramalho e seus parceiros do “rock rural”, como Alceu Valença e Geraldo Azevedo, representam não apenas uma das originais sonoridades nordestinas, mas um fazer muito próprio. “Zé Ramalho é um dos artistas que fizeram parte da minha formação na adolescência. Foi um dos primeiros artistas a me apresentarem a possibilidade de junção entre rock e música popular brasileira (numa época em que eu nem sabia delimitar muito esses universos). Essa possibilidade tem sido um dos fios condutores da maior parte dos trabalhos que fiz até hoje em música. Ao mesmo tempo, ele trazia a possibilidade de uma letra de canção ir muito além da poética banal, transitando pelo surrealismo, psicodelismo, e carregando toda uma sugestão de um universo mágico, místico, do Nordeste. Essa poética tinha uma pressão que mais tarde eu chamaria de punk, muitas vezes apontando para a realidade de forma contundente, como em ‘Admirável gado novo’, ou fazendo alusões à sexualidade de uma forma nada ingênua, como em ‘Chão de giz’ e ‘Garoto de aluguel’. Tinha uma confluência de sagrado e profano que ainda hoje mantém as canções vivas”, pontua Leão.
Para Goulart, a Eminência Parda sempre perseguiu a versatilidade da qual Zé Ramalho deu conta ao longo de sua trajetória. “Acho que a versão que fizemos se encaixou naturalmente, meio sem esforço, já que o pensamento na base é o mesmo. Pesamos um pouco mais, mas não tão pesado quanto a viola de Zé Ramalho”, ri. “Ele faz parte do inconsciente coletivo do Brasil. É uma figura mítica. Um artista de grande talento, um compositor excepcional. São pessoas como ele que nos fazem sentir o peso e a importância que a arte pode ter na vida. Sua capacidade de ser raiz, orgânico e universal sempre nos inspirou”, completa o músico juiz-forano, cuja banda faz show neste sábado, no Arteria, às 20h, reverenciando o Nordeste do Brasil, tocando Ednardo, Fagner, Dominguinhos, Belchior e, claro, Zé Ramalho, dentre outros nomes que ajudaram a dar novo rumo para o rock nacional nos anos 1970.
Zé como trilha
Quando ouviu Zé Ramalho pela primeira vez, Edson Leão ainda era bem menino. “Canções que eram absolutamente misteriosas para um adolescente, ao longo dos anos foram ganhando também uma força humana muito grande à medida em que foram se tornando trilha para as experiências da vida adulta, para relacionamentos que tiveram essas canções como trilha”, comenta o músico, que, nos anos 1980, formou, com Wesley, sua primeira banda, de pós-punk, e nos anos 1990 viu formar-se a Eminência tal como é hoje. “Avôhai”, nessa caminhada, representa não apenas a oportunidade de outras visibilidades, mas, sobretudo, o reconhecimento por uma expressão genuína. “A banda vinha de um histórico de alguns anos focada no trabalho autoral, que foi o nosso começo. Quando começamos a fazer releituras veio a preocupação de tentar criar uma linguagem própria também com os sons que nos influenciaram. Muitas vezes evitávamos ouvir as gravações originais preferindo trabalhar com o que tínhamos de memória e deixar as lacunas serem completadas pela criação de cada um. Uma parte fundamental também eram os improvisos que aconteciam a cada noite, e que iam sendo incorporados ao arranjo. E, é claro, uma intenção de colocar o máximo da nossa energia como se estivéssemos compondo algo nosso ou melhor, participando de uma parceria”, narra Leão, aos 51 anos, para logo pontuar a emoção generalizada na interpretação da música que encantou Zé Ramalho: “Me lembro muito, por exemplo de como o Danniel (Goulart, guitarrista) sai do solo dessa música, como quem sai de um transe. O clima nos shows é esse. Assim foram se cristalizando os arranjos, e o estúdio veio bem depois.”