Mulheres se destacam em exercício de longa duração do Exército

Grupo de cem alunas e 47 alunos foi testado à exaustão no Campo de Instrução de Juiz de Fora. Futuras combatentes participaram das mesmas atividades que os homens e mostraram força e resistência, apesar dos desafios.


Por Michele Meireles

08/07/2018 às 07h00

A farda não tem corte diferente. Os rostos femininos e masculinos, todos camuflados com tinta, somem embaixo da boina. Todos se tornam números de guerra. Apesar de serem a maioria, o que denuncia a presença das mulheres são os coques e tranças nos cabelos, percebidos quando elas se viram de lado ou de costas. Passando pelos mesmos testes e aprendizados, homens e mulheres têm a mesma missão: se tornarem sargentos combatentes do Exército Brasileiro e defenderem a pátria. A convite do Exército, a Tribuna acompanhou parte do primeiro exercício de longa duração dos alunos do Curso de Formação de Sargentos. Foram cinco dias em que as cem alunas e 47 alunos do curso foram treinados e testados à exaustão no Campo de Instrução de Juiz de Fora. Apesar dos muitos desafios físicos e psicológicos, todas as mulheres concluíram a instrução e chamaram a atenção dos comandantes pelas características de liderança, perseverança e resistência.

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Foram cinco dias de treinamentos práticos intensos, que começavam por volta de 4h30 e só se encerravam cerca de meia-noite. Todos os alunos permaneceram em tempo integral no Campo de Instrução, sediado no Bairro Remonta, na Zona Norte. As atividades práticas, realizadas entre os dias 25 de junho e 1 de julho, coroaram a primeira etapa das 34 semanas de formação. Os futuros sargentos de carreira do Exército Brasileiro estão sendo formados no 4º Grupo de Artilharia de Campanha Leve (4º GACL) e no 10º Batalhão de Infantaria Leve (10º BIL).

Juiz de Fora é a primeira cidade brasileira a iniciar a formação de mulheres na linha bélica, e todas elas estão sendo formadas para atuarem no front de combate. São pioneiras na área.”Está sendo uma experiência muito gratificante para a 4ª Brigada iniciar o curso de formação das mulheres. O resultado é muito favorável, elas estão se saindo muito bem. São bastante determinadas e isso tem sido demonstrado também nas atividades práticas no campo”, afirmou o comandante da 4ª Brigada de Infantaria Leve (Montanha), general Alcântara Leite.

O curso

Os objetivos do curso são iniciar a formação do caráter militar, criação de hábitos adequados à vida militar, aquisição de conhecimentos militares, obtenção de reflexos na execução de técnicas e táticas individuais de combate e desenvolvimento da capacidade física. Após o primeiro ano em Juiz de Fora, as alunas podem optar por seguir para Escola de Sargentos de Logística (EsSLog), no Rio de Janeiro, ou para o Centro de Instrução de Aviação do Exército (Ciavex), em Taubaté (SP). Para os homens, há uma terceira opção, a Escola de Sargentos das Armas (EsSA), em Três Corações (MG). Ao término de 2019, essas sargentos estarão à frente de pequenas frações na tropa, como combatentes do Exército Brasileiro na área logística, como intendência, manutenção de comunicações, topografia, manutenção de armamento, mecânico de viatura e mecânico operador.

Isonomia é palavra de ordem

Durante o treinamento, futuros combatentes simulam atividades que podem ser necessárias em combates reais (FOto: SGT Delvivo/ 4 GACL

Durante a semana de acampamento em Juiz de Fora, uma palavra de ordem: isonomia. As mulheres encararam os mesmos desafios que os homens, participando de atividades em que treinaram rastejo, salvamento, progressão em meio a tiros, passagem por curso d’água portando fuzis e mochilas pesadas. Elas também aprenderam a se orientar no terreno e treinaram a observação durante a noite e o dia.

“É durante esta semana que os alunos colocam em prática o que foi ensinado em sala de aula, que é tudo aquilo que poderia ocorrer em um eventual conflito. Eles aprendem a progressão no terreno, a aproveitá-lo utilizando diversas técnicas, como rastejo, engatinhar, se orientar e se proteger. Este é o segundo ano que estamos fazendo a formação das mulheres, e elas não estão devendo nada para os homens. Realizam as mesmas atividades, claro, com alguma dificuldade física maior devido a seus corpos, mas são muito dedicadas. Percebemos que, em funções de chefia, elas se preocupam em liderar da melhor maneira possível. Todas estão vibrando e com muita dedicação”, comentou o comandante do 4º GACL, coronel Marcelo Brun.

Um dos instrutores do curso, capitão Walisson Pedrozo, responsável por fazer o planejamento do exercício, destacou que nenhuma mudança na atividade foi feita depois da vinda das mulheres. “As exigências são as mesmas. A única adaptação foi a estrutura física do quartel para alojar as mulheres separadamente, e também treinamos duas monitoras para lidar de forma mais próxima com as alunas. A avaliação é muito positiva, as mulheres estão fazendo um excelente trabalho, elas são a maioria nos dois anos que o curso acontece em Juiz de Fora”, comentou o oficial.
O desempenho das mulheres nas instruções tem sido motivo de orgulho também para os colegas de turma. O aluno Rodrigo Nogueira da Silva, afirmou que é “uma experiência muito boa ter essa diversidade, poder unir as qualidade femininas e masculinas. Aqui é um podendo ajudar ao outro, cada um dando seu melhor”, disse.

Resistência e perseverança

Se durante o treinamento a presença feminina passava despercebida, na formatura de entrega da boina, ato que marca o sucesso do desempenho do exercício de longa duração, as mulheres tomam lugar de destaque. A presença delas é notada já na entoação do hino nacional, já que as vozes femininas são as mais percebidas. A situação é inédita no Exército Brasileiro, que tem seu contingente formado na maioria por homens. Entre os instrutores e comandantes, a vibração e empenho com que as mulheres cumpriram todos os desafios chamou a atenção.

Suelem Barela Ribeiro foi uma das monitoras do curso. Ela é sargento da área de saúde e acompanhou de perto toda a atividade. “As alunas se destacaram pela iniciativa e perseverança. O exercício teve as mesmas exigências para os homens e mulheres, elas se saíram muito bem pela resistência e entusiasmo com que fizeram tudo. Elas mereceram conquistar a boina que hoje estão usando”, destacou a militar.

Comandante do 10º Batalhão de Infantaria Leve (10º BIL), o coronel Guilherme Motinha também ressaltou o bom desempenho das alunas. Este é o primeiro ano que o batalhão forma mulheres. “Nós não vimos diferença no desempenho de homens e mulheres, foi excelente. Eles se motivaram, se prepararam e venceram o desafio. No próximo mês participarão de um novo campo, e vão enfrentar novos desafios”, disse. O coronel Marcelo Brun, comandante do 4º GACL, acrescentou que as mulheres fizeram tudo o que foi proposto com “bastante rusticidade, vibração e empenho”.

Durante esse evento, os futuros sargentos puderam rever seus familiares e amigos, um momento de muita emoção. Para elas, a sensação tem um gosto ainda mais especial: de missão cumprida. “É uma conquista pra nós estarmos sendo recebidas no Exército e demais Forças Armadas. Não foi fácil resistir, mas graças a Deus chegamos até aqui, é muito emocionante”, disse a aluna 369, Quesia Quintanilha.

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Repórter relata  participação no treinamento

Durante a atividade Pista do Esclarecedor, na terça-feira (26), integrei uma das patrulhas, junto com três alunas. O desafio era concluir a atividade usando farda e todos os outros equipamentos, inclusive fuzil. Durante o percurso, eu – nomeada de 361, e as três alunas – nomeadas de 369, 365 e 347, encontramos vários incidentes. Havia simulações de militares feridos por inimigos em combate. Nesta atividade, além de salvar a vida dos companheiros, a missão é resguardar sua própria vida.

A primeira etapa era composta pela simulação do salvamento de um militar que havia se afogado em um curso d’água. Era preciso fazer uma padiola, cama em que se transportam doentes ou feridos, usando uma gandola e dois pedaços de bambu. Após montar o apetrecho, entramos na água para retirar o ferido, representado por um boneco. Ainda se soma o peso dos equipamentos e a dificuldade de caminhar na água com muito barro e galhos de bambu. O transporte foi feito por mim e outra aluna, enquanto as outras duas militares faziam a segurança na frente e atrás da equipe.

Na etapa seguinte, encontramos militares com pernas amputadas, olhos perfurados e queimados. Os ferimentos, embora feitos com maquiagem, eram muito reais, e ele simulavam muita dor e desconforto. Além de decidir a melhor forma de cuidar dos machucados, precisávamos acalmá-los. Em todo o percurso havia militares questionando o nosso trabalho e apontando possíveis erros que poderiam tirar nossas vidas em uma situação real.
A outra simulação era uma situação em que duas das patrulheiras estavam feridas e precisavam ser carregadas. A parte mais difícil: a militar machucada precisava ser arrastada pelo chão, já que haviam tiros sendo disparados. Além do corpo dela, havia ainda o peso de dois fuzis e dos demais equipamentos. Sem saber que eu era repórter, a militar que era arrastada por mim, a 347, Débora Frederico, não deixou que eu desistisse, embora eu estivesse com muita dor no pescoço. O espírito de companheirismo é enorme.

Encontramos mais militares feridos. Um deles foi picado por animal peçonhento, e precisávamos decidir a melhor técnica a usar. Depois, outra pista de rastejo para concluir a missão. Ao fim do trecho, a certeza era de que as mulheres que estavam ali eram muito guerreiras. Assim que saíam da pista, elas já iam para uma área onde estavam suas mochilas e tinham poucos minutos para começar uma nova missão. Sempre uma ajudando a outra, até para calçar os coturnos, tirados por alguns instantes para aliviar os pés. Pensei em como elas aguentariam cinco dias com poucas horas de sono, sete minutos apenas para o banho e a pressão de fazer tudo certo o tempo todo.

A aluna 369, Quesia Quintanilha, considerou a experiência muito válida. “Está sendo muito bom, passamos aqui coisas que nunca esperávamos. É muito bom ver as mulheres conquistando seu espaço no Exército”, disse. A aluna 347, Débora Frederico, considerou a pressão psicológica como o maior desafio, mas disse que manteria “a moral elevada” para concluir todos os desafios. A aluna 365, Thaís Silva, afirmou que “a prática abre horizontes. Temos que ter a mente no lugar, é tudo muito novo, está sendo muito gratificante”, disse.

 

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