Greve, o correio e os guardados

Por Isabela Monken Velloso, Professora e pesquisadora do Instituto de Artes e Design, bacharelado em Moda da Universidade Federal de Juiz de Fora


Por Isabela Monken Velloso, Professora e pesquisadora do Instituto de Artes e Design, bacharelado em Moda da Universidade Federal de Juiz de Fora

08/06/2018 às 08h23

Não consigo me desligar da palavra: correio. Ela me lembra, invariavelmente, a ideia de troca, de correspondências, o que enviamos, aquilo que parte e também as coisas recebidas, “guardadas na pedra”, como nos ensina Guimarães Rosa. Nestes dias em que o país vive momentos difíceis, algumas trocas me parecem intensificadas, sejam elas boas ou más. Lembrei-me, particularmente, das passagens de um texto que descrevia a narrativa do estilista japonês Yohji Yamamoto e seu desejo de criar não uma roupa, mas “a roupa”, como aquela que em tempos pretéritos realmente servia de abrigo e proteção ao corpo, revestindo e aquecendo, envolvendo e acompanhando.

Desde que passamos a possuir mais de uma peça, por mais afeitos a um traje, ele perde, certamente, a pompa diante daqueles que, um dia, de fato, representavam nosso escudo e caverna, prolongamento do corpo, não apenas indissociáveis a ele, mas indispensáveis à manutenção da vida. A ideia tão presente deste criador me veio, recorrentemente, à mente nos últimos dias em que a água de nossas residências passou a ter algo de caminhão. Sim.

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A água passou a conter, como num estranho jogo da parte pelo todo, suas rodas, sua robustez e, certamente, o mais importante, o caminhoneiro. Fomos lembrados de que, sem esses homens, elos importantes de nossa grande tessitura, o tratamento da água e de seus produtos não se realiza. O mesmo raciocínio se daria com tudo o que nos cerca, o leite: os animais, os carros, o gás, a saúde, o plantar e o colher. Tudo, de repente, passou a ser, num jogo metonímico, uma parte da narrativa dos caminhões, preponderantemente dos homens que os conduzem. Eles ficaram em minhas memórias e na de todos os brasileiros como que dotados de uma suprema onipresença, num dom de ubiquidade, em tudo aquilo que acompanha a nossa existência rotineira.

Guardamos na pedra esses dias e talvez tenhamos, agora, muita dificuldade em definir o que é externo a nós e aquilo que nos constitui. Talvez, tenhamos descoberto que somos também, cada um a seu modo, indispensáveis. Estamos todos contidos uns nos outros, como o caminhão está na água e, neste gosto amargo, fomos relembrados de que tudo ao nosso redor nos unifica e interessa, imediatamente. Não precisamos do frio ou da intempérie de tempos remotos para redescobrir “a roupa” imaginada, os dispositivos de acolhimento estão já dispersos em tudo, no prosaísmo das coisas não vistas, mas imprescindíveis, nas narrativas e nas redes humanas contidas no pão, na água, na gasolina, nos medicamentos, no transporte.
Redescobrimos, nestes dias difíceis, numa redenção metonímica, o suor dos outros em nossa respiração. Essa seja, talvez, a nossa melhor acolhida em meio à incerteza e aos jogos políticos que nos cercam.

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