Na sala de espera


Por Daniela Arbex

22/04/2018 às 07h00- Atualizada 22/04/2018 às 11h46

Quando vi a Zélia Maria Landim, 65 anos, sentada na sala de espera de um estúdio de tatuagem no Centro de Juiz de Fora, senti uma emoção profunda. Um filme passou na minha cabeça. Nele estava impresso as imagens de milhares de brasileiros que sofrem de doença mental e passaram os últimos 50 anos confinados em locais que diziam tratar os loucos, mas, na verdade, só impunham a eles uma existência de abandono. Por isso, reencontrar Zélia livre de estruturas manicomiais, buscando reconstruir sua identidade, mexeu muito comigo.

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Conheci Zélia há 20 anos, no antigo Hospital São Marcos, instituição psiquiátrica de Juiz de Fora desativada há cerca de uma década. Na época, ela participava de um projeto que ensaiava a ressocialização de pacientes psiquiátricos, com a saída temporária de mulheres internadas para realização de atividades que as aproximasse da comunidade, uma ideia embrionária do que seria, no futuro, a filosofia das residências terapêuticas.

Zélia estava entre o grupo de pessoas que era, semanalmente, levado para tomar passes na Casa do Caminho. Acompanhando o psicólogo Ricardo Sabino, responsável pela iniciativa, eu tive meu primeiro contato com as pacientes. Depois, entrei diversas vezes no hospital para denunciar as condições em que elas eram mantidas. Jamais esquecerei o cheiro daquele lugar, os gritos de lamento e a ociosidade que existia naquele espaço de confinamento. Muitas internas tinham morrido para o mundo exterior sem que ninguém sentisse falta delas. Foram tempos duríssimos.

Olhar para Zélia, agora, naquela sala de espera, dona de si mesma e de suas vontades, me encheu de alegria. Ela celebrava com uma tatuagem a volta de Júnior, o filho que não viu crescer e que, aos 38 anos, retornava ao seu primeiro ninho em busca de respostas para uma vida. Para quem experimentou muito sofrimento como Zélia, a volta do caçula era uma redenção. Tatuar o corpo significava um ritual de celebração.

Luzia, a amiga inseparável, manteve-se ao lado dela no estúdio onde a tatuagem seria feita. Também moradora de residência terapêutica, ela tem biografia semelhante a de Zélia. A doença mental impediu as duas de criarem os filhos que pariram. No caso de Luzia, que deu a luz a uma menina sadia em uma maternidade carioca, receber no lugar da filha um menino morto para enterrar foi um grande baque. Não teve com quem reclamar. Ninguém daria ouvidos a uma louca.

Tratadas como gado em uma vida de obediência e exclusão, Zélia e Luzia deram o grito de independência, empoderadas pela luta dos que fizeram a reforma psiquiátrica. Gente como a gente, elas merecem ser vistas e reconhecidas. Ao tatuar na própria pele o nome do filho que voltou, Zélia diz ao mundo que a partir de agora só admitirá carregar em seu corpo marcas de amor.

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