Pais denunciam problemas com a educação inclusiva na rede pública

Nas escolas do município, reclamação é a falta de docentes compartilhados; já nos colégios do estado, problema é a troca constante de professores de apoio


Por Júlia Campos, estagiária sob supervisão da editora Marise Baesso

20/04/2018 às 07h00- Atualizada 20/04/2018 às 07h56

Os alunos que deveriam ser contemplados pelo projeto de bidocência – que consiste em um segundo professor nas turmas em que estão presentes crianças autistas e com deficiência física e/ou intelectual matriculadas nas redes estadual e municipal – estão enfrentando problemas para receber o acompanhamento adequado. As principais queixas são a falta de cerca de cem docentes compartilhados na rede municipal e a troca constante de professores de apoio na rede estadual, além da falta de acompanhamento de crianças que são consideradas independentes por se comunicarem, mas que precisam de auxílio na aprendizagem e para irem ao banheiro.

A dona de casa Keila da Silva de Oliveira Parreira, 42, mãe de uma menina de 15, que tem autismo e deficiência visual, relata que a filha, que é estudante da Escola Municipal Cosette de Alencar há três anos, está em casa há cerca de um mês, pois não há um profissional da docência compartilhada para acompanhá-la. “Houve uma contratação no começo do ano, e esse profissional tirou um atestado médico de 30 dias. A escola encaminhou um pedido de substituição. A gente tem ido na Secretaria de Educação, tem conversado, e a escola diz para mim que também não tem professor para ficar com ela. Às vezes, eu a levo, mas a escola pede para buscá-la mais cedo”. Keila diz que a menina entra às 7h e sai, normalmente, às 11h, mas, das últimas vezes, teve que buscá-la uma hora mais cedo. “Tudo que ela vai fazer precisa de alguém para auxiliar, e não tem. Então não estou a levando para a escola, porque tenho medo que alguma coisa aconteça com ela.”

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Keila relata que a situação já ocorreu outra vezes. Segundo ela, há outro fator que inviabiliza a docência compartilhada. “Os professores vêm, preenchem a vaga, depois fazem inscrição no estado para outras coisas e migram, deixando a criança que acompanham, designada pela prefeitura. Quando entra com o pedido de substituição na prefeitura que é o problema. Porque eles têm uma forma de contratar… eles têm convocação, muita coisa. E esse período demora, e a criança fica sem ir à escola”. A dona de casa se sente frustrada com as atuais circunstâncias. “Toda a vida, minha filha estudou em escola especial, mas aí eu quis dar uma chance para a inclusão, porque ela precisa, até mesmo por causa de modelos, e, desde quando ela entrou, eu sempre tive problemas nessa área”.

Sem acompanhamento
A presidente do Grupo de Apoio a Pais e Profissionais de Pessoas com Autismo (Gappa), Arienne Menezes, alerta para outra questão que estaria acontecendo na educação inclusiva. “Baseados na lei, eles estão tirando os professores de apoio de crianças que são consideradas ‘independentes’. Para eles, se a criança é verbal, se ela se comunica, é considerada independente. É o caso de um menino de 8, que também possui transtorno do espectro autista, e estuda na Escola Municipal Tancredo Neves. A mãe do menino, Neiva Fernanda Ribeiro, 41, explica que, desde o diagnóstico, ele recebe acompanhamento adequado, e que, apesar de ainda ser um pouco comprometida, o menino desenvolveu a fala. Ela relata que, quando ele adentrou na rede municipal de ensino, em 2017, era acompanhado por uma estagiária, mas que, neste ano, o menino não está recebendo apoio da educação inclusiva. “Ele não é alfabetizado, não reconhece cores, não reconhece números e está ficando ocioso quando vai para a escola. A professora, muitas vezes, não passa dever para ele, uma matéria adaptada, porque ela não dá conta. E a Secretaria de Educação está se negando a contratar uma docente compartilhada para ele”. A situação é ainda mais complexa, já que o menino necessita de auxílio para ir ao banheiro.

Segundo a coordenadora geral do Sindicato dos Professores (Sinpro), Aparecida de Oliveira Pinto, as reclamações aumentaram com o início do ano letivo vigente.

“Nós recebemos reclamações de professores falando sobre a falta desse profissional nas escolas, que atualmente chamamos de docência compartilhada. São várias escolas sem esse profissional, e nós já fizemos a cobrança na Secretaria de Educação, e também à Secretaria de Administração e Recursos Humanos, e a Prefeitura alega que essas pessoas estão sendo chamadas e que não estão tendo profissionais para esta contratação. Estamos vendo isso como uma situação muito grave, porque é preciso que a PJF intensifique essa contratação com mais rapidez.”

O Sinpro também cobra a presença de assistentes sociais e psicólogos dentro destas escolas para acompanhar os casos de alunos com deficiência. “Eles não colocam. Isso é uma luta nossa de vários anos, no mínimo há dez anos que estamos nessa luta, e não conseguimos esses profissionais.”

A neuropsicopedagoga Cristina Coronha alerta para os danos que a falta do docente compartilhado pode causar. “Quando um professor faz um planejamento, ele faz esperando um desenvolvimento para aquela determinada faixa etária. Quando há uma criança com transtorno, a gente sabe que o desenvolvimento dela não está acorde às outras crianças daquela faixa etária. Ela até pode ter uma inteligência superior em algumas questões, mas em outras, ela vai ter um déficit. O professor de apoio é a ponte entre a criança e o conhecimento, em termos de habilidade. O professor de apoio faz uma adaptação curricular, se ele não estiver em sala ou se não houver um vínculo, a criança automaticamente não vai aprender, mesmo que seja o mínimo, que foi planejado para ela.”

Bianca Mara Alves Franco busca os direitos da filha de 11 anos na educação pública (Foto: Fernando Priamo)

Aparecida de Oliveira Pinto também destaca que alunos que dependem do projeto Caminho da Escola, que oferecia transporte para crianças com deficiência e respectivos acompanhantes, estão desassistidos. “As mães não têm condições, elas trabalham fora de casa e não podem acompanhar os filhos no trajeto”.

“É preciso que se faça um esforço para disponibilizar esse profissional. Se a Prefeitura disponibilizou, no ano passado, este serviço, ela precisa permanecer com este atendimento imediato. Nós já estamos em março. Daqui a pouco chega junho e os alunos ainda não serão atendidos.”

 

Esclarecimentos do município

Com relação aos alunos com deficiência ou com transtorno global do desenvolvimento (autismo), a Secretaria de Educação de Juiz de Fora informou que segue a orientação do MEC, através da Nota Técnica nº 19 de 08/09/10: “Dentre os serviços da educação especial que os sistemas de ensino devem prover, estão os profissionais de apoio, tais como aqueles necessários para promoção da acessibilidade e para atendimento a necessidades específicas dos estudantes no âmbito da acessibilidade às comunicações e da atenção aos cuidados pessoais de alimentação, higiene e locomoção.” A pasta informou que quando há um aluno na turma com alguma necessidade acima descrita (com grande dificuldade de interação social, ou que por algum motivo necessita de ajuda para se alimentar, ou usuário de fraldas ou usuário de cadeira de rodas), a escola encaminha a solicitação, para que a Secretaria avalie e disponibilize o profissional de apoio, com formação docente, para que possa compartilhar as funções com os professores regentes de turma. “Ambos são responsáveis não só pelo cuidar, mas também pelo educar de todos os alunos da turma. Por isso, na Prefeitura de Juiz de Fora o profissional de apoio é chamado de Professor de Docência Compartilhada. Na perspectiva de uma escola inclusiva, seria um equívoco um profissional numa turma para acompanhar e auxiliar apenas o aluno com necessidades especiais. Tal prática caracterizaria uma exclusão dentro da sala de aula. Portanto, não é a Além da deficiência diagnosticada clinicamente, também são avaliadas as características de funcionalidade do aluno em questão, que para determinar a presença de um segundo professor na turma e sim. Desta forma, nem todos os alunos que apresentam autismo ou síndrome de down, por exemplo, darão direito à turma a um profissional de apoio”, diz a nota. Ainda segundo a Secretaria de Educação, foram disponibilizadas no mês de abril, 120 novas vagas de professores de docência compartilhada (bidocentes), para a rede municipal de ensino. Destas vagas, 101 já foram preenchidas restando 19 vagas que serão oferecidas essa semana.

Caminho da escola

Com relação ao programa Caminho da Escola, a pasta esclareceu que, para a segurança dessas crianças, é necessário, além de motorista, um profissional acompanhante. “A prefeitura aderiu ao programa Caminho da Escola como mais uma possibilidade de transporte escolar. Todas as crianças com deficiência, cujas famílias têm renda mensal de até três salários mínimos, já são atendidas pelo Cartão Passe Livre, e o transporte escolar vinculado ao Caminhos da Escola possui, em cada carro, acomodação para quatro crianças com deficiência física”.

Segundo a pasta, atualmente, três rotas foram disponibilizadas para atender as crianças que estudam nas escolas: Doutor Adhemar Rezende de Andrade; Antônio Carlos Fagundes; Tancredo Neves; Professora Áurea Nardelli; Rocha Pombo; Eunice Alves Vieira; Cecília Meireles. “Em síntese, além do transporte coletivo que atende à população e os escolares, há três ônibus circulando na cidade, atendendo o total de 12 crianças. Há ainda um quarto ônibus que atende aos pedidos de transporte especial concentrados na Secretaria de Trasporte e Trânsito (Settra). Devido a falta do cargo de acompanhante, as rotas ficaram suspensas por um período, mas agora em parceria com as famílias, os ônibus voltarama funcionar normalmente”, finaliza a Secretaria Municipal de Educação.

 

Problema se repete nas escolas do estado

A dona de casa Bianca Mara Alves Franco, 49 anos, mãe de uma menina de 11, que tem síndrome do espectro autista, trava uma luta de anos em busca dos direitos da filha. O caso está no Ministério Público, que deu início a um procedimento administrativo contra o Estado de Minas Gerais por causa das dificuldades enfrentadas. Bianca já havia travado um processo judicial pleiteando o acompanhamento individualizado da filha na escola anterior.
Ela diz que, há cerca de três anos, há uma troca constante de professores de apoio. “O autista já tem a dificuldade da interação social, de conectividade com a pessoa que está trabalhando. No início, não me preocupei com aprendizado, porque cada criança tem o seu tempo, e o autista é assim, você tem que tirar o que ele tem de melhor e não seguir um determinado padrão que o estado exige. Mas, a partir do momento em que o professor de apoio conseguiu ter esta conectividade com ela, ele conseguiu a confiança, que demora, não é de uma hora para outra. Aí se consegue isso, e há uma quebra do vínculo, um pequeno ganho que pode demorar anos para se conseguir com aquela criança devido a essas resoluções internas que o estado adota, no critério de seleção de professores.”

Bianca conta que, devido à rotatividade de professores de apoio, a filha está desenvolvendo um quadro depressivo. “A partir do momento em que se tem um laudo médico solicitando uma continuidade do professor de apoio, é porque aquilo é importante para a criança. Ela conseguiu desenvolver naquele período, e eles tiraram. Minha filha está iniciando um processo depressivo, e, no caso dela, foi ocasionado devido às trocas constantes de professor. Não se troca só o professor de apoio, se troca o regente, o da sala de recursos…”

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No momento, a menina tem o professor de apoio. Bianca diz que há quatro anos tem este tipo de problema de trocas de professor. Ela também diz que já enviou cartas à Superintendência Regional de Ensino explicando a situação da filha e afirma que o processo, movido pelo Conselho Tutelar, é seu último recurso para que a filha esteja integrada à educação inclusiva. “Eu entrei em contato com o Conselho Tutelar, não fui ao Ministério Público, porque é o último ano que eu faço uma tentativa. Só estou esperando a decisão da promotoria.” Quatorze conselheiros tutelares enviaram um ofício à promotoria, que instaurou o procedimento administrativo, e, após receber explicações do estado e ouvir a reclamante, avaliará as providências cabíveis.

Critério
A neuropsicopedagoga Cristina Coronha diz que a escolha do profissional responsável pela educação inclusiva deve ser feita com muito critério, já que a oscilação no cargo pode comprometer o aprendizado. “O profissional vai intermediar a relação da criança com o conhecimento, com o mundo, com ela mesma, da criança com o outro. Essa pessoa vai representar a escola e toda a possibilidade de desenvolvimento dessa criança. Nós sabemos que, principalmente nas idades iniciais, quando a gente fala de primeira infância até os 6 anos, e também até o final do ensino fundamental, aos 14 anos, esses vínculos afetivos são fundamentais na questão estruturante do caráter da criança. Dependendo do nível de estímulo, de vínculo afetivo que seja criado com essa criança, a gente sabe que essa aprendizagem vai florescer mais ou menos. O professor de apoio é a âncora da criança, a base, é ele que vai ajudar, ou não, nesse desenvolvimento. Se esse professor é alterado ou muda com uma certa constância, ou se afasta, ou se ausenta, e a criança vive oscilações dessa figura, isso vai causar uma instabilidade, não só na questão emocional. Nós precisamos considerar essas questões como base. A criança tem que se sentir segura, feliz, com ambientes estruturados e equilibrados.”

Bianca Franco se preocupa com outra questão, que estaria acontecendo tanto na rede estadual quanto na municipal.

“O estado também diz que o professor pode ser compartilhado, pode atender mais de uma criança em uma determinada turma, e isso não é algo que funciona para o autista. Isso, ao contrário, atrapalha. Como é que um professor vai trabalhar com crianças com síndromes diferentes e mesmo uma criança autista? Cada um é de uma maneira.”

A neuropsicopedagoga Cristina Coronha destaca a importância da bidocência (Foto: Divulgação)

Estado esclarece questionamentos

A Secretaria de Estado de Educação (SEE) informou, por meio de nota, que a Superintendência Regional de Ensino (SRE) de Juiz de Fora já enviou resposta ao Ministério Público referente ao caso citado. A inspetora responsável visitou a Escola Estadual Fernando Lobo para verificar a situação, visto que a mãe da estudante questiona que a criança foi realocada para outro professor de apoio no ano de 2018. “É importante esclarecer que não existe vínculo para este tipo de função, já que o profissional é designado para atuar em determinada escola a partir da demanda apresentada no ato da matrícula do estudante e avaliação pedagógica. Pela legislação estadual, a contratação desse tipo de profissional, na falta de um servidor efetivo, se dá através de designação, ou seja, contratação temporária, na qual é seguida uma lista de classificação, definida por critérios como escolaridade e tempo de serviço, de acordo com a Resolução SEE nº 3660/2017. A designação é uma forma de preencher interinamente os cargos, e os contratos devem ser válidos apenas dentro do ano letivo vigente”, diz a nota.

A pasta esclareceu que a designação de 2018 para a função de professor de apoio foi realizada no início de fevereiro, e a vaga para atendimento à aluna da Escola Estadual Fernando Lobo foi preenchida pelo profissional melhor colocado e qualificado para o cargo, de acordo com os critérios da resolução. “No relatório encaminhado ao MP, a inspetora enfatiza que a estudante não frequentou a escola em nenhum dia letivo em 2018, apenas a mãe compareceu à unidade para fazer suas reivindicações sobre o profissional contratado. Portanto, não se pode avaliar o trabalho que poderia ter sido desenvolvido com a estudante, já que a mesma não teve contato nenhum com a profissional contratada, que está na escola à disposição aguardando a chegada da aluna para início das aulas”, diz a nota.

Já sobre a reclamação de um mesmo docente atender a mais de um aluno, a secretaria informou que, de acordo com o Guia de Orientação da Educação Especial na Rede Estadual de Ensino, um professor de apoio à comunicação, linguagem e tecnologias assistivas pode atender de um a três alunos que estejam no mesmo turno e na mesma série. A Secretaria de Estado de Educação ainda disse que a designação dos profissionais ocorreu normalmente, sendo que, neste ano letivo de 2018, já estão atuando 135 professores de apoio na rede estadual de Juiz de Fora.

Situação seria recorrente

De acordo com a presidente do Gappa, Arienne Menezes, a situação aconteceria todos os anos. Ela esclarece que neste ano ainda não há uma reclamação protocolada pelo Gappa. “A gente tem uma dimensão de que a rede municipal é a mais preparada hoje para receber crianças com deficiência, pela estrutura, pelo empenho que se tem, apesar de todas as dificuldades que encontramos. E acontece que todo ano muita gente sai da rede estadual e da rede particular para ir para a rede municipal, então isso gera uma demanda muito maior, fora os novos diagnósticos, que todo ano tem”.

Após uma audiência pública, no último dia 26, na Câmara de Vereadores, foi criado um grupo de trabalho formado pelos parlamentares Marlon Siqueira (MBD), Kennedy Ribeiro (MDB) e José Fiorilo (PTC) – que propuseram o encontro, e também os vereadores Adriano Miranda (PHS), André Mariano (PSC) e Antônio Aguiar (MDB), além de pais de alunos assistidos pela educação inclusiva e pelas associações Gappa e Movimento do Orgulho Autista Brasil (MOAB). O grupo busca unir esforços para que a situação, tanto no município, quanto no estado, seja resolvida.

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