“Canção de Ninar”: Teatro para ninguém dormir

A peça da companhia juiz-forana T.O.C. resgata o momento atual para recontar o passado, e vice-versa


Por Carime Elmor

19/04/2018 às 07h00- Atualizada 22/04/2018 às 23h53

T.O.C. apresenta nova temporada de “Canção de Ninar (ou Faça o que tem que fazer)” Foto: Carlos Júnior/Divulgação

Parece que enquanto Táscia Souza escrevia “Canção de Ninar (ou Faça o que tem que fazer)”, peça do T.O.C. Teatro Obsessivo Compulsivo, ela antecipava o futuro, ou vivia tão firme o presente em que estava inserida que já sentia desde 2014 o impacto dos caminhos da política e de todos os discursos que nos fazem enxergar o mundo caminhando para trás.

Marcos Araújo, ator da peça e repórter da Tribuna, conta que quando foi assistir, no ano passado, ao longo da programação do ATO, ao espetáculo “Se eu fosse Iracema”, ele sentiu-se instigado a sugerir ao T.O.C. que retomasse “Canção de Ninar”. “Fiquei pensando que uma companhia daqui de Juiz de Fora já tinha uma montagem com discurso tão atual e crítico quanto ‘Se eu fosse Iracema’, protagonizada pela Adassa Martins, só que estava guardada, sem ser encenada, e propus a Táscia de voltarmos com uma nova temporada.” “Canção de Ninar” volta neste fim de semana, entre os dias 20 e 22 de abril, às 20h, no espaço OAndarDeBaixo.

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O texto envolve três tempos e temas que são encenados como se criassem um único contexto, com memórias que se repetem na história e que, portanto, na peça, podem ser contemporâneas: a perseguição aos cristãos durante o Império Romano, durante a Antiguidade tardia, a ditadura militar brasileira e os dias atuais.

“Eu escrevi o texto em 2014, na época dos 50 anos do golpe de 1964, a peça foi encenada um ano depois. O mais estranho é pensar que o sentimento que eu tinha naquela época para o que eu tenho hoje é o mesmo ou ainda maior; quando escrevi, eu achei que ela não poderia ser encenada em outro momento, porque estaria datada, citando episódios específicos. Quatro anos depois de ser escrita, é muito assustador constatar que a gente não precisou alterar nenhuma vírgula, para a peça ser atual. O que soava como um alerta virou uma profecia. Enquanto dramaturga é um ponto positivo, mas enquanto cidadã brasileira é assustador”, constata Táscia Souza.

A peça encerra-se com dois atores puxando uma faixa escrita: “Nunca mais!” Naquele ano, Dilma Rousseff ainda ocupava o cargo de presidenta, pela qual foi eleita pelo povo, e Táscia dava esse basta final na peça acreditando que nunca mais o Brasil viveria períodos de tamanha conturbação política. O marco é histórico, pois no ano seguinte à estreia, que aconteceu em 2015, o governo seria trocado, e os discursos de ódio, aflorados.

“Em 2014, esse era um grito de: ‘ditadura nunca mais’, um aviso para não esquecermos da história, para que ela não se repita. A gente pensou em alterar esse epílogo, mas decidi manter, pois eu considero que a gente viveu um golpe parlamentar, jurídico e midiático em 2016. O ‘nunca mais’ ainda é forte”.

A direção é de Gustavo Burla, parceiro na vida e no teatro de Táscia, sendo que a maior parte do elenco foi mantida: Marisa Loures, Paulo Moraes, Júlio Andrade e Marcos Araújo estavam em 2015 e reencenam neste fim de semana, somente Saulo W. Machado e Lisandra Dantas são estreantes na recente montagem e fazem o papel de pais da protagonista Nina, uma mulher que levanta as questões de gênero tratando da opressão contra a mulher, que, assim como outras questões raciais e sociais, atravessam épocas distintas. “O objetivo era que os três períodos destacados não ficassem demarcados, queremos borrar o limite. Assim como Brecht, usamos o recurso de buscar a história do passado para refletir o aqui e o agora e evidenciar as semelhanças.”

O título da peça, assim como boa parte do texto, é formado por figuras de linguagem e ironia, em momentos de discursos binários e acirrados, é um receio da própria companhia o modo como a peça será recebida, especialmente agora. “Canção de Ninar ao mesmo tempo em que é um trocadilho com o nome da protagonista é uma ironia. O objetivo não é adormecer, mas fazer despertar para a gravidade da realidade”. Já o complemento (ou Faça o que tem que fazer) é a reprodução da fala de Santa Catarina de Alexandria, dita ao carrasco no momento em que seria decapitada.

Após a breve temporada em Juiz de Fora, a peça será novamente apresentada no Fetuba – Festival de Teatro de Ubá, dia 29 e, em seguida, no Nepopó – Festival Nacional de Teatro de São João Nepomuceno, de 31 de maio a 3 de junho.

“Canção de Ninar (ou Faça o que tem que fazer)
De 20 a 22 de abril, às 20h, no espaço OAndarDeBaixo (Rua Floriano Peixoto 37 – Centro)

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